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Panteão Nacional

Mercúrio, meu cabrão:
Tu que alinhaste a melena
de ouro em jeito de aviso
à queda, que penteaste teu
cabelinho todo para trás
antecipando o encontro:
Não podias ter soltado
pelo menos um conselho?
Meu grandessíssimo filho
de um deus velho, seu
moleque mimado: não
dava pra, sei lá, escrever
recado nos anéis do vovô
ou enfiar à socapa uma
mensagem no mapa
topográfico de Alicante?
Qualquer coisa servia, M.
Tu que puxaste o lustro
às sandálias e às asas
das tuas sandálias, que
jeitaste o paletó de herói
e te lavaste os pés: tu já
sabias no que isso dava.
Meu grande sacana, tua
obrigação era subir na boca
e um megafone dourado
e dizer: «Cuidado rapaziada,
tenham atenção a esse nó
que acontece no estômago
no preciso momento em que
esperam por vosso amante
Matilde Campilho

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem.

Havia as misérias e as grandezas. Havia o amigo e o inimigo, o leal e o traiçoeiro. Havia muito de amor e de ódio. Havia muito de riqueza na pobreza, na miséria de cada um. E havia também a miséria que transcende a própria miséria, a miséria do egoísmo, da inveja, do ódio, do desejo assassino de liquidar, de acabar com o irmão.

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem. Do homem que não se descobriu em si próprio nem no outro. Havia a miséria que nem o amor de pessoas como Vó Rita, como Bondade e como Negro Alírio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver. Havia a miséria das pessoas que trazem o coração trancado para qualquer ato de amor. E essas pessoas acabavam atraindo para si o ódio de todos os demais. Fuinha era uma dessas pessoas.

Maria-Nova tinha muito medo de Fuinha. Sempre que passava em frente ao barraco dele apertava os passos. Uns diziam que ele era louco, outros que era maldoso, perverso, e que nada de louco tinha. Conversava, andava, falava, trabalhava normalmente. Aparecia no armazém de Seu Ladislau, tomava banho ali naqueles quartinhos em que os homens se banhavam, bebia uns goles de pinga, falava e até ria um pouco para alguns, e ia embora. Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos acordavam altas horas da noite com o grito das duas. Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas e batia até sangrar. Se elas choravam baixinho, batia até que elas gritassem e depois batia até que elas calassem.

A Fuizinha crescia temerosa, arredia. Uma vez Maria-Nova parou perto da cerca de arame farpado que havia em volta do barracão e Fuizinha ameaçou soltar alguma palavra, quase confidência de tão baixo que era. Maria-Nova escutou a voz do Fuinha e fugiu. Escutou depois um baque surdo no chão e os gritos da menina. Fuizinha crescia entre o choro e a pancadaria. Tinha o rosto todo marcado. E sua mãe era passiva e temerosa. Eles não recebiam nem faziam visitas. Bondade sempre passava por lá, demorava um pouco, mas nunca lhe permitiram ficar para dormir. Ele nunca esquecia das duas. Sempre ia lá no dia ou após o dia em que misteriosamente sumia da favela e retornava com dinheiro, alimento e balas para as crianças. Bondade era o único que as visitava. Vó Rita, antes, visitava-as também, mas depois que ela passou a viver com a Outra, nunca mais visitou ninguém.

Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a pancadaria na noite anterior. A mulher gritara, gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a voz do Fuinha:

– Agora silêncio.

A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha.

Maria-Nova tinha pavor dele. Houve quem tentasse falar com ele e Fuinha cinicamente respondeu que a filha era dele e que ele fazia com ela o que bem quisesse. No dia em que Fuizinha tentou aproximar-se de Maria-Nova, de noite, os gritos dela foram mais dilacerantes ainda.

Conceição Evaristo (Becos da memória, 3ed, Pallas, 2018)

Foto de Mateus Souza no Pexels

Notícias escrevinhadas na beira da estrada

Não sou de choro fácil a não ser quando descubro qualquer coisa muito interessante sobre ácido desoxirribonucleico. Ou quando acho uma carta que fale sobre a descoberta de um novo modelo para a estrutura do ácido desoxirribonucleico, uma carta que termine com “muito amor, papai”. Francis Crick achou o desenho do ADN e escreveu a seu filho só para dizer que “nossa estrutura é muito bonita”. Estrutura, foi o que ele falou. Antes de despedir-se ainda disse: ” Quando você chegar em casa vou-te mostrar o modelo”. Isso não esqueça os dois pacotes de leite, já agora passe a comprar pão, guarde o resto do dinheiro para seus caramelos, e quando você chegar eu te mostro o mecanismo copiador básico a partir do qual a vida vem da vida. Não sou de choro fácil mas um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos me comove. Cromossomas me animam, ribossomas me espantam. A divisão celular não me deixa dormir, e olha que eu moro bem no meio da montanha. De vez em quando vejo passar os aviões, mas isso nunca acontece de madrugada — a noite se guarda toda para o infinito silêncio. Algumas vezes, durante o apuramento das estrelas, penso nos santos que protegem os pilotos. Amelia Earhart disse que não casaria a não ser que fosse assinada uma tabela de condições e essas condições implicavam a possível fuga a qualquer momento.” I cannot gurantee to endure at all times the confinements of even an attractive cage”. Vai passarinho. Soube de uma canção cujo refrão dizia I would die for you, fiquei pensando que mais de metade das canções do mundo dizem isso mas eu nunca entendi isso. Negócio de amor e morte, credo. Lá na escola eles ensinavam que amor são sete vidas multiplicadas, então acho que amor é o contrário do fim. Sei lá, o mundo está mudando tanto. Não sou de choro fácil a não ser quando penso em determinados milagres que ainda não aconteceram. Meu time ganhou por três a dois. O maior banco norte-americano errou, e errou em muitos milhões. Ninguém chegou a falar do aniversário do Superman, e isso também conta como erro. Faltam seis dias para a Primavera, está tendo uma contagem comunitária na aldeia mais próxima daqui. Acho que está chegando a hora do sossego, e que muita alegria vai pintar por aí. Acho que uma palavra é muito mais bonita do que uma carabina, mas não sei se vem ao caso. Nenhuma palavra quer ferir outras palavras: nem desoxirribonucleico, nem montanha, nem canção. Todos esses conceitos têm os seus sinónimos simplificados, veja só, ácido desoxirribonucleico e ADN são exatamente a mesma coisa, e o resto das palavras você acha. É tudo uma questão de amor e prisma, por favor não abra os canhões. Quando Amelia Earhart morreu continuava casada com Putnam — suspeito que ela deve ter visto rostos incríveis nas estrelas. Que coisa mais linda esse ácido despenteado, caramba. Olhei com mais atenção o desenho da estrutura e descobri: a raça humana é toda brilho.

Matilde Campilho

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito.

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Image by Schomsi from Pixabay

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Foto de Ogo no Pexels

Três poemas de Luisa Isabel Villa Meriño

Mientras lavo los platos
pienso que en otras casas los platos no solo se lavan
se tiran al suelo y se queman…

El mundo interior de las flores es tan violento
como el de los tigres

***

Enquanto lavo os pratos
penso que em outras casas os pratos não apenas são lavados
são atirados ao solo e queimados...

O mundo interior das flores é tão violento
quanto o dos tigres...
Mi amiga dice
que en las plantas de los pies lleva el nombre de su agresor
pisarlo le ayuda a reescribirse
Me complace la valentía de las otras
debemos estar libres de todo mal
¿y yo? ¿Se puede escribir “agua”
y pisarla?
Siento las piernas como rocas grandes…
¿He de autoexcluirme de mi guerra?

***

Minha amiga disse
que nas plantas dos pés leva o nome de seu agressor
pisá-lo lhe ajuda a reescrever-se
Me agrada a valentia das outras
devemos estar livres de todo mal
e eu? Pode-se escrever “água”
e pisá-la?
Sinto as pernas como rochas grandes...
Hei de excluir-me de minha guerra?

Soy una niña que no crece
y como moisés
rueda
río abajo…

Soy una mujer que se alargó de forma prematura los huesos
porque quiso ser más larga que el río
y salvar a la niña que
se ahoga mientras llueve
Me han dicho: Hay que volver al lugar en donde se
prendió el espanto

¿Cómo?
si los verdugos quieren agua y secan la rivera
quieren reír y prohíben el llanto
quieren la tierra y prohíben los entierros…

Yo quisiera escribir algo
en el cuerpo mutilado del rito
o algo que me diga
cómo retorno

***

Sou uma menina que não cresce
e como moisés
roda
rio abaixo...

Sou uma mulher que alongou de forma prematura os ossos
porque quis ser mais longa que o rio
e salvar a menina que
se afoga enquanto chove
Disseram-me: tem que voltar ao lugar onde
se prendeu o espanto

Como?
se os carrascos querem água e secam os arroios
querem rir e proíbem o pranto
querem a terra e proíbem os enterros...

Eu gostaria de escrever algo
no corpo mutilado do rito
ou algo que me diga
como retorno
Luisa Isabel Villa Meriño (Os poemas integram o livro Dios fue mejor cuando era tigre, 2020)
Tradução: Lílian Almeida

Lua adversa

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
Cecília Meireles
Foto de Dom Le Roy no Pexels

A primeira vez que fui ao céu

Era embaixo do cajueiro, na fazenda do meu avô. No Cauê, interior da Bahia, onde ele ficava.

Nas férias no meio do ano, em uma tarde de sol quente, eu o vi pela primeira vez. Estava na fazenda vizinha, fiquei hipnotizada, queria um pra mim.

Na manhã seguinte, inquieta no café, movimentando as pernas embaixo da mesa, com as mãos procurando o que mexer, os olhos faiscavam de expectativa, indiferentes ao desgosto de minha avó diante dessa minha alegria.

Apesar de vozinha não gostar, a devoção de meu pedido ao meu avô foi tão forte que, com o sol já passado do meio-dia, mas ainda faltando horas para alcançar os braços da lua, ele voltava da lida, trajando sorriso de rei e trazendo nas mãos cordas e madeira.

Minha avó tentou convencê-lo: “Se essa menina se machucar, você é o culpado!”

Vejam se eu, já com oito velinhas sopradas, perto de alcançar mais uma, me machucaria?

Vovô quase cedeu a ela no primeiro momento, mas confessei minha preferência por ele e expressei que tomaria cuidado. Isso e um beijo no rosto lhe deram disposição para começar a construir meu divertimento.

Eu observava atenta, nem tão perto para não atrapalhar, nem tão longe para não me descuidar de detalhes da construção: as cordas sendo presas nos galhos do cajueiro e depois as mesmas, sustentando a madeira. Estava em guarda, como quem espera a hóstia consagrada e a primeira comunhão.

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Eu ouvia meu nome como se estivesse em transe, encantada pelo trabalho que analisava. Foi quando percebi que estava pronto para a estreia, mas precisaria esperar, pois o sol já tinha partido e as estrelas dominavam o céu. Era perfeito. Se eu pudesse, dormiria lá, de olhos bem abertos, vigilantes. Seria possível?

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Precisávamos jantar. Eu já estava com a barriga bem cheia de felicidade, mas ainda assim queria devorar a noite para que o grande dia chegasse.

Após a refeição, nos reunimos para a oração, vovô sentado na rede, vovó no tamborete, eu ajoelhada diante do crucifixo da varanda, todos iluminados pela luz do candeeiro. As preces eram sempre as mesmas… Pai Nosso, Ave Maria, Anjo da Guarda… Eu, que sempre fingia devoção, rezei nesta noite colocando pontuação em cada frase. A ausência das minhas irmãs — se elas estivessem não parariam quietas, me cutucariam, ficariam rindo baixinho, me beliscando — e o sonho de todo o dia fizeram com que eu me comportasse e agradecesse de fato nas preces dessa noite.

Quase não dormi. Acordava toda hora, espiava pela fresta da janela, mas ainda continuava escuro. O sol tardou, até que entrou devagarinho pela fenda e eu pulei da cama. Nem escovei os dentes, saí correndo para o encontro da minha nave…

— Pode ir voltando, mocinha! Escove os dentes e tome café. E cadê a benção?

— Benção, vôzinho.

— Deus lhe abençoe!

Cabisbaixa, mas com ligeireza, fui fazer o que me foi ordenado. Quando terminei, vovô me esperava no cajueiro como um guerreiro, já dando de imediato algumas orientações, de como tomar cuidado com as lagartas de fogo, não colocar os pés no chão e não aumentar a velocidade.

Sentei-me, posicionei as mãos nas cordas, vovô puxou para trás a madeira em que eu estava sentada e soltou…

Fui ganhando velocidade, ele empurrava as minhas costas.

Fechei meus olhos, sentindo o vaivém… O cajueiro soltava as folhas como se estivesse emocionado… O vento acariciava o meu rosto… Estava no céu!

Elizandra Souza (Filha do fogo: 12 contos de amor e cura, Mjiba – Comunicação, Produção e Literatura Negra, 2020)

Força e simplicidade na poesia de Geni Guimarães

Não sou racista.
Sou doída, é verdade,
tenho choros, confesso.
Não vos alerto por represália
nem vos cobro meus direitos por vingança.
Só quero,
banir de nossos peitos
esta gosma hereditária e triste
que muito me magoa
e tanto te envergonha.

Minha Mãe

Gosto da inocência dela:
Benze crianças,
Faz simpatias,
Reza sorrindo,
Chora rezando.

Gosto da inocência dela:
Apanha rosas,
Poda os espinhos,
Coloca nas mãos,
De meninos branquinhos.

Gosto da inocência dela:
Conta histórias longas,
De negros perdidos,
Nas matas cerradas,
Dos chãos do país.

Ama a todo o mundo,
Diz que a ida à lua,
É conto de fada.

Gosto da inocência dela:
Crê na independência,
E é tanta a inocência,
Que até hoje ela pensa,
Que acabou a escravidão.
… Inocência dela…

Integridade

Ser negra
Na integridade
Calma e morna dos dias

Ser negra
De carapinhas,
De dorso brilhante
De pés soltos nos caminhos

Ser negra
De negras mãos
De negras mamas,
De negra alma.

Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.

Ser negra,
Do verso e reverso,
De choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam a terra.

Negra
Puro afro sangue negro
Saindo aos jorros,
Por todos os poros.

Geni Guimarães

Foto de 3Motional Studio no Pexels