O texto a seguir, de autoria da carioca, feminista e Professora e Pesquisadora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Adriana Maria de Abreu Barbosa, foi publicado na Revista Cotoxó, em março de 2020. Replico aqui o convite à leitura que ela faz.
O convite do mês de março é para ler o novo livro da poetiza Lílian Almeida: Pulsares. Você pode saber mais dessa baiana de Salvador, professora da UNEB, visitando o seu blog “Cartas, fotografias e outros guardados” (https://lirioalmeida.wordpress.com)
Em Pulsares, Lilian me fez chorar profundamente com o poema Saudade. Lá eu encontrei uma mulher, uma máquina de costura, e nossas roupas na mão dessa mulher agora ausente. E eu, filha de costureira, me irmanei com essa ancestralidade de meninas pobres cujas roupas estavam na mão de uma mulher que costurava. A mulher do poema já era saudade, a minha ainda não, mas o choro nos irmanou. Eu não sei se a mulher ausente do poema era biográfica ou ficcional, mas a mulher do poema me comove porque ela evoca mulheres reais. Por evocar mulheres reais, a literatura é documento, mas por me comover; a literatura é monumento.
Entretanto, não acho que o novo livro de Lílian seja um livro sobre mulheres, ouso dizer que não é! Muito menos sobre mulheres negras. A meu ver só há mulheres no livro de Lílian na última parte intitulada Eclipse. Em Eclipse a sexualidade emana de um corpo feminino. Há referências explícitas com em “a fêmea exala o cheiro rubro da vida “do poema Cio. Em outros versos o sexo biológico da mulher é metáfora, como “concha aberta” e “carne fendida”.
A primeira parte que leva o título do livro (Pulsares) é sobre o existir. E nesse existir há uma busca por um eu anterior ao ego. Um eu poeira das estrelas. Um eu conectado com um cosmos. Um eu transcendente e, por isso, anterior às HISTÓRIAS. Portanto um eu ainda sem marcas de gênero, classe e etnia. Um eu cuja a pertença é Divina. Sobre esse eu transitório e em transição, mas que já mora dentro desde sempre nos contam alguns poemas do livro “grávida do ser que me habita vou parir a mim mesma. Outra”. “Mergulho no dentro de mim. Palavras águas retidas. Represa de poesia. No chão de existir. “E existir perpassa o fazer poesia.
Lílian nos lembra Cecília, parece dizer de um jeito novo que “não é feliz nem é triste: é poeta.” E diz isso, na primeira parte do livro, também como Cecília, com menos marcas sociais. Entretanto muito mais esperançosa: A vida é o acender e o apagar da luz. Existir é maior (no poema Fiat Lux) Há meninos e meninas na lírica de Lilian. Na contemplação do infinito I há um coração de menino; em Contemplação do Infinito II há um olhar de menina. Enquanto poeira das estrelas e desbravadores de um eu anterior às Histórias, a lírica de Lílian ainda não tem gênero.
Na parte 2, Siderações, a vida cotidiana preenche a tela: começa com a linda metáfora de que o vagalume é memória das estrelas e termina com um poema que fala de uma rua: Na rua Marechal mallet. A água que beijou o asfalto chia. Sob os pneus dos automóveis (me lembrando Drummond). Da poeira das estrelas até o chão da rua. De Cecília a Drummond. Influências literárias pra pensar o existir? Existir sendo poeta, ou poetisa?
Pesquisadora de Helena Parente Cunha há, na poesia de Lílian, vestígios de uma certa influência temática e estética nesse dizer sobre existências e transcendências. Existências e transcendências imbricadas com o fazer poesia sempre. E de fato só aparece a poetiza, nos finalmentes do livro. Na parte última, quando caída das estrelas e atravessadas todas as ruas, há uma fêmea descobrindo prazeres. Entretanto o gozo parece também memória de tempos primeiros: “carne fendida de estelares gozos” é o que diz o último poema Galáctico Há uma mulheridade em Lílian cuja a pertença é das galáxias, anterior a todo o processo histórico que nos separou como mulheres.
Lílian Almeida, escritora, mulher e negra, nos desafia e encanta por nos devolver uma poesia liberta do compromisso de tanto engajamento político exigido nos tempos atuais. Há espaço para ser poeta também. Desfilar lampejos de memória das estrelas em nós e nos resgatar de tantos aprisionamentos, limitações e dor. Em Pulsares há um convite a existir.
Imagem de uma das páginas do livro Pulsares, de Lílian Almeida