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Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem.

Havia as misérias e as grandezas. Havia o amigo e o inimigo, o leal e o traiçoeiro. Havia muito de amor e de ódio. Havia muito de riqueza na pobreza, na miséria de cada um. E havia também a miséria que transcende a própria miséria, a miséria do egoísmo, da inveja, do ódio, do desejo assassino de liquidar, de acabar com o irmão.

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem. Do homem que não se descobriu em si próprio nem no outro. Havia a miséria que nem o amor de pessoas como Vó Rita, como Bondade e como Negro Alírio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver. Havia a miséria das pessoas que trazem o coração trancado para qualquer ato de amor. E essas pessoas acabavam atraindo para si o ódio de todos os demais. Fuinha era uma dessas pessoas.

Maria-Nova tinha muito medo de Fuinha. Sempre que passava em frente ao barraco dele apertava os passos. Uns diziam que ele era louco, outros que era maldoso, perverso, e que nada de louco tinha. Conversava, andava, falava, trabalhava normalmente. Aparecia no armazém de Seu Ladislau, tomava banho ali naqueles quartinhos em que os homens se banhavam, bebia uns goles de pinga, falava e até ria um pouco para alguns, e ia embora. Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos acordavam altas horas da noite com o grito das duas. Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas e batia até sangrar. Se elas choravam baixinho, batia até que elas gritassem e depois batia até que elas calassem.

A Fuizinha crescia temerosa, arredia. Uma vez Maria-Nova parou perto da cerca de arame farpado que havia em volta do barracão e Fuizinha ameaçou soltar alguma palavra, quase confidência de tão baixo que era. Maria-Nova escutou a voz do Fuinha e fugiu. Escutou depois um baque surdo no chão e os gritos da menina. Fuizinha crescia entre o choro e a pancadaria. Tinha o rosto todo marcado. E sua mãe era passiva e temerosa. Eles não recebiam nem faziam visitas. Bondade sempre passava por lá, demorava um pouco, mas nunca lhe permitiram ficar para dormir. Ele nunca esquecia das duas. Sempre ia lá no dia ou após o dia em que misteriosamente sumia da favela e retornava com dinheiro, alimento e balas para as crianças. Bondade era o único que as visitava. Vó Rita, antes, visitava-as também, mas depois que ela passou a viver com a Outra, nunca mais visitou ninguém.

Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a pancadaria na noite anterior. A mulher gritara, gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a voz do Fuinha:

– Agora silêncio.

A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha.

Maria-Nova tinha pavor dele. Houve quem tentasse falar com ele e Fuinha cinicamente respondeu que a filha era dele e que ele fazia com ela o que bem quisesse. No dia em que Fuizinha tentou aproximar-se de Maria-Nova, de noite, os gritos dela foram mais dilacerantes ainda.

Conceição Evaristo (Becos da memória, 3ed, Pallas, 2018)

Foto de Mateus Souza no Pexels

Home office

pilhas de trabalho sobre a mesa
amordaçando dores.

para ouvidos cegos
sentir caiu em desuso
melhor mesmo é produzir.
  
felicidade:
cinco publicações em periódico
de excelência.
  
chove no meu escritório.
a água devora os papéis
abre caminhos.
  
deixa um rastro de vida
que acompanho
contemplando o Sol
que vai nascer.
Lílian Almeida 
Foto de Ithalu Dominguez no Pexels

De zero a dez

Há dias eu pensava sobre a intensidade da dor, como mensurá-la e expressá-la para quem não a sente. Era um exercício de autopercepção e de expressão. Isso me instigava no desafio de traduzir em palavra o que sentia e levar ao outro o que foi sentido. Ofício de quem escreve, não é? Pois, me parecia um bom exercício, esse, de traduzir a intensidade da dor.

O primeiro disparo veio na pergunta “qual a intensidade da dor?”. Eu fiquei sem saber responder, falei que era forte e a medida foi sugerida. “De zero a 10, quanto?” Ainda me detive uns minutos para responder um três, àquele momento. Passaram dias desse diálogo entre paciente e osteopata. E eu fiquei com o de zero a dez na cabeça. O que era pra mim uma dor na intensidade 10? Suportaria mais do que a intensidade que qualifiquei de cinco? Eu não sabia. Sabia apenas que doía e que não era bom sentir o desconforto físico que me visitava fazia tempo.

Foto de Evelyn Chong no Pexels

Não me apraz esse tipo de visita, gera incômodos. Como gosto de ler as coisas, inclusive os sinais do meu corpo, me questionei por anos sobre o motivo da volta indesejada da dor. Caminhos vários percorri, entendi somatizações, padrões, comportamentos vários que eram porta aberta para a companhia dolorosa. Todos foram importantes, reconheço. E se ainda não curei de vez a dor, curei vários mecanismos de atuação na vida que geram desconforto físico ou, se não, tomei consciência de muita coisa em mim que a atraía.

Em várias portas bati, desde tratamento espiritual a ortopedista, cada um trouxe sua cota de contribuição, mas ela continuava dando as caras vez em quando. Resolvi que iria por um caminho novo pra mim, afeita que sou à possibilidade de ter uma perspectiva diferente sobre o já dito. Ia procurar um osteopata para um diagnóstico e tratamento, era uma das minhas metas para 2020. A pandemia chegou, ilhou todo mundo em casa e vi meu propósito de autocuidado escorrer pelos meses. O tempo ia passando, eu via o plano ficar distante. Até que um dia, numa conversa com uma amiga, surgiu o osteopata. Estava dado o sinal, a abertura para a possibilidade de implementar o cuidado. A essa altura o confinamento começava a ser flexibilizado. Deixei passar uns dias, amadurecendo a possibilidade, e marquei a consulta.

Foi lá, no primeiro atendimento, que fui confrontada com o desafio de traduzir a intensidade da dor, com uma régua de zero a dez. O tratamento ia avançando, o desconforto reduzindo e a pergunta volta e meia me rondava. “De zero a dez, quanto?” O que era uma dor nota 10? Com anos de convivência, tornei-me resiliente e resistente à dor. Suportava-a tentando diálogo, mesmo quando ia às lágrimas. Confesso que não sei se as lágrimas eram de dor ou de impotência, outro tipo de dor, que dói além físico.

Nas sessões de tratamento osteopático minha maior intensidade expressada era o cinco. E já era muito pra mim. Sempre, depois da resposta, me perguntava em silêncio. O que é uma dor dez? Aguentaria eu mais do que já estou aguentando? Quanto mais precisa doer pra chegar a 9 ou 10? Já não é o bastante para caber nessa quantificação? Estou superestimando minha capacidade de resistir à dor? Subestimando a intensidade do doer?

Os dias foram passando e a visita, que pensei ter ido embora definitivamente, voltou com disposição. Senti bastante dor, tive alguns movimentos comprometidos e também a possibilidade de receber cuidado profissional num curto espaço de tempo. “Dói?” “Dói”. “Quanto?” “Muito.” “De zero a dez, quanto?” “Cinco, seis… o que é uma dor nota dez?” Não tive resposta. Doía muito e era o bastante. Cinco era igual a dez na matemática dolorida do meu corpo. Finalmente consegui resolver o impasse.

Lílian Almeida

O homem que brigou com o vento

No caso, o homem sou eu mesmo. E a culpa é fácil dizer… é do vento! Aconteceu o seguinte: desde que resolvi dar um tapa no visual da casa e instalar um forro no teto, a coisa toda ficou estranha. A casa, é verdade, ficou mais bonitinha, mas eu não fazia ideia de que, com esse simples movimento de renovação da parte de cima e interna do lar, estaria eu criando um novo mundo.

Pequenos apocalipses sobre minha cabeça. Defini primeiro assim. Depois comecei a andar com passos de detetive pelos cômodos, as mãos para trás, como imagino ser o gesto atemporal dos filósofos, perscrutando tudo que estava acima de mim e, supunha, no entrelugar da casa. Invisíveis criaturas ressuscitando o Axé no meu telhado? Invasão de um exército alienígena, cujas armas são perturbações sônicas? Castigo divino pelo meu ateísmo? A conclusão veio num sopro: eu estava aborrecido, três dias sem dormir, ou melhor, despertado em intervalos na madrugada pelas trombetas do além.

Tinha que fazer algo. Instalei a escada e subi no telhado. Tarefa complicada. Logo me vi imitando Tom Cruise na famosa cena do filme Missão Impossível. Braços estendidos me transformando na cruz de minha própria penitência. Eu fui arrumar o problema e quase que arrumo mesmo um problema. Com o peso de minha mão, o telhado estalou e uma rachadura surgiu. Recuei. Veja só a falta de efeitos especiais hollywoodianos na vida prática de uma pessoa.

Embora meu pai tenha me treinado desde a infância para dominar as técnicas de resolução de qualquer problema futuro de engenharia civil amadora (não sou um engenheiro civil formado, sou apenas cidadão), sinto que o decepcionei, pois mal consigo fixar um prego na parede sem sair com avarias no meu próprio corpo.

Para mim, era difícil aceitar que o ar atmosférico que se desloca naturalmente, seguindo determinada direção, estivesse simplesmente agindo conforme seus movimentos de existência. Cada lufada sacudia o meu juízo em busca de meios para deixar de sentir o vento forte e prolongado que produzia um universo musical distante do meu gosto.

Prosseguia combativo.

Um amigo que entende de telhados me disse: Faça isso, isso e isso. E então eu fiz isso, isso e isso. Nada. Rimara, minha companheira, mais resignada, me falava: Não brigue com o vento, amor. Não tem jeito. Vamos nos adaptar. Aquela paciência de Monja Coen me deixava mais agitado do que a própria corrente de ar que me atormentava. Tá certo, eu dizia. Mesmo sabendo que, para mim, não estava nada certo. Longe disso. Por outro lado, nosso contraste diante do problema me revelava: o mundo não tem só a forma de si mesmo, tem também um pouco da nossa forma, e esse nosso jeito de ver as coisas negocia com a forma do mundo.

Depois das inúmeras tentativas que, para mim, resultaram falhas, minha companheira me diz pela milésima vez: Melhorou, amor. Relaxe. E eu, contrariando a regra de sempre ouvi-la (ela quase sempre tem razão), ainda às voltas com possíveis resoluções definitivas contra o vento malévolo, me agarro a essa verdade, que só ela acredita: É, melhorou.

Evanilton Gonçalves (autor de Coisas que desaprendi com o tempo. Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, 08/09/2020)

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay 

A primeira vez que fui ao céu

Era embaixo do cajueiro, na fazenda do meu avô. No Cauê, interior da Bahia, onde ele ficava.

Nas férias no meio do ano, em uma tarde de sol quente, eu o vi pela primeira vez. Estava na fazenda vizinha, fiquei hipnotizada, queria um pra mim.

Na manhã seguinte, inquieta no café, movimentando as pernas embaixo da mesa, com as mãos procurando o que mexer, os olhos faiscavam de expectativa, indiferentes ao desgosto de minha avó diante dessa minha alegria.

Apesar de vozinha não gostar, a devoção de meu pedido ao meu avô foi tão forte que, com o sol já passado do meio-dia, mas ainda faltando horas para alcançar os braços da lua, ele voltava da lida, trajando sorriso de rei e trazendo nas mãos cordas e madeira.

Minha avó tentou convencê-lo: “Se essa menina se machucar, você é o culpado!”

Vejam se eu, já com oito velinhas sopradas, perto de alcançar mais uma, me machucaria?

Vovô quase cedeu a ela no primeiro momento, mas confessei minha preferência por ele e expressei que tomaria cuidado. Isso e um beijo no rosto lhe deram disposição para começar a construir meu divertimento.

Eu observava atenta, nem tão perto para não atrapalhar, nem tão longe para não me descuidar de detalhes da construção: as cordas sendo presas nos galhos do cajueiro e depois as mesmas, sustentando a madeira. Estava em guarda, como quem espera a hóstia consagrada e a primeira comunhão.

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Eu ouvia meu nome como se estivesse em transe, encantada pelo trabalho que analisava. Foi quando percebi que estava pronto para a estreia, mas precisaria esperar, pois o sol já tinha partido e as estrelas dominavam o céu. Era perfeito. Se eu pudesse, dormiria lá, de olhos bem abertos, vigilantes. Seria possível?

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Precisávamos jantar. Eu já estava com a barriga bem cheia de felicidade, mas ainda assim queria devorar a noite para que o grande dia chegasse.

Após a refeição, nos reunimos para a oração, vovô sentado na rede, vovó no tamborete, eu ajoelhada diante do crucifixo da varanda, todos iluminados pela luz do candeeiro. As preces eram sempre as mesmas… Pai Nosso, Ave Maria, Anjo da Guarda… Eu, que sempre fingia devoção, rezei nesta noite colocando pontuação em cada frase. A ausência das minhas irmãs — se elas estivessem não parariam quietas, me cutucariam, ficariam rindo baixinho, me beliscando — e o sonho de todo o dia fizeram com que eu me comportasse e agradecesse de fato nas preces dessa noite.

Quase não dormi. Acordava toda hora, espiava pela fresta da janela, mas ainda continuava escuro. O sol tardou, até que entrou devagarinho pela fenda e eu pulei da cama. Nem escovei os dentes, saí correndo para o encontro da minha nave…

— Pode ir voltando, mocinha! Escove os dentes e tome café. E cadê a benção?

— Benção, vôzinho.

— Deus lhe abençoe!

Cabisbaixa, mas com ligeireza, fui fazer o que me foi ordenado. Quando terminei, vovô me esperava no cajueiro como um guerreiro, já dando de imediato algumas orientações, de como tomar cuidado com as lagartas de fogo, não colocar os pés no chão e não aumentar a velocidade.

Sentei-me, posicionei as mãos nas cordas, vovô puxou para trás a madeira em que eu estava sentada e soltou…

Fui ganhando velocidade, ele empurrava as minhas costas.

Fechei meus olhos, sentindo o vaivém… O cajueiro soltava as folhas como se estivesse emocionado… O vento acariciava o meu rosto… Estava no céu!

Elizandra Souza (Filha do fogo: 12 contos de amor e cura, Mjiba – Comunicação, Produção e Literatura Negra, 2020)

O lobo mau

Eu vi o lobo mau.
Foi? Quando?
De noite.
De noite? Na floresta?
Não, em meu quarto.
Puxa! E aí?
Ele estava conversando com Chapeuzinho e depois saiu na carreira.
Foi pra casa da Vovozinha.
É.
E então? O que é que você fez?
Eu também fui.
Foi? E quando chegou lá?
O lobo disse: Abra a porta, sua Vovó!
E ela abriu.
Não. Não abro, não abro. Pois eu vou soprar. E derrubou a casa da Vovó.
Foi?
E comeu a Vovó.
Inteirinha?
É. Só tirou o vestido dela, pra não engasgar.
Ahn! E Chapeuzinho?
Chapeuzinho ficou se balançando na rede.
Na rede?
Na varanda.
Na varanda da casa? Mas o lobo não havia derrubado a casa com um sopro?
Foi.
E pode isso?
Ah, pai, você não entende nada. As pessoas grandes acreditam em tudo!

Antonio Brasileiro (“O menino no guarda-roupa”)

Imagem de 
Mauro Borghesi do 
Pixabay 

Estátua!

Às vezes me sinto um solitário à espreita, tentando capturar o exato momento em que tudo seja mais simples. Agora mesmo penso na época em que alguém colocava uma música animada enquanto eu e minha turma dançávamos como se não houvesse amanhã até que havia a pausa e tínhamos que congelar ao comando de: ESTÁTUA! Não lembro de sair vencedor nessas brincadeiras. Pouco importa. A linha do tempo me diz que o essencial é a alegria compartilhada, o riso solto, a felicidade de estar no mundo com pessoas felizes ao redor.

Quando nos encarávamos naquela simulação de imobilidade total, éramos pequenas figuras de carne e osso, com uma historinha iniciada e o anseio de fazer os outros olharem para nós com atenção sem igual. A música tocava outra vez e então outra vez nos movíamos com alegria no mundo. Sinto falta daquele sorriso fácil. Cresci um tanto indiferente às figuras esculpidas em mármore ou fundidas em metal que servem, eu sabia apenas, como banheiros para as aves que socializam nas praças.

Acontece que fui aprendendo, pouco a pouco, sobre o fato de, muitas vezes, a História oficial ser a narrativa dos vencedores, que pode ser entendida por vitória de mercenários, escravocratas, genocidas, carrascos, assassinos, sequestradores, torturadores e toda uma leva de gente má, fantasiada de cidadão de bem, que pisou na terra para espalhar dor e fazer uma criminosa fortuna com a exploração alheia. Não há virtude na exploração. Mas essas pessoas estão aí, soltas pela cidade, em seus pontos fixos de existência macabra. Só falta inventarem uma agência de turismo que guie as pessoas por esses lugares onde os meliantes históricos habitam:

— Bem, pessoal. Esse aqui é mais um que construiu uma reputação positiva pra si e contou com ajuda de cúmplices pra esconder suas falcatruas. Sim, sim, no fim da vida, esse também fez vultuosas doações pra caridade, o que, como já sabemos, lhe garantiu estadia aqui e, supostamente, uma outra no condomínio celestial tão disputado.

Ao olhar com mais atenção a materialização da cidade onde meu corpo habita, é assustador ver as homenagens que a História oficial me oferece. A cada esquina, um desvario petrificado me expõe ao terror de sua existência. Enquanto, cada vez mais, pessoas se unem contra o racismo estrutural, em prol do bem-estar coletivo, tem quem fique inconformado com a possibilidade de remoção e realocação museológica de certas estátuas e ache injusto deixar de prestar homenagem a pessoas cuja grandeza foi nos legar um rastro de sangue e sofrimento.

Como explicou o professor, jurista e filósofo Silvio Almeida em participação memorável no programa Roda Viva: “Se você tem um monumento dentro da cidade, é uma indicação de quem você quer que esteja ali, a quem você faz reverência naquele espaço”. Não é estranho que bandidos históricos tenham lugar de honra em nossa cidade? Se olharmos com atenção certos nomes de ruas ou as instalações de figuras tridimensionais expostas em terras brasileiras, o susto é garantido, o constrangimento também deveria ser.

Evanilton Gonçalves é autor de Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S). A crônica acima foi publicada no Jornal A Tarde do dia 09/09/2020.

Imagem de Wildschuetz por Pixabay 

O toque da delicadeza nos poemas de Áquila Emanuelle

IT’S ALL THAT MATTER
há aquela canção do caetano que fala exatamente sobre você embora
[oculte o teu nome escuto sempre atenta
sorriso canto de boca
deliro ao som da frase
que diz: "o mar nos olhos"
teus olhos, pois sim
e enxergo para além do verso
nas entrelinhas sobrepostas
das palavras
toda imensidão que há em ti
e tanto me inunda os olhos
a poesia
a vida
LOVE SOUND
i wanna be with you, eu disse
enquanto me aquecia no teu abraço-casa que penso eterno
me movo delicadamente e encosto meu ouvido na concha do teu peito
pronta a vigiar o sonzinho que
o amor faz aí dentro
o amor bate assim aceleradamente
ansioso em dizer o que sente
and then
repito sem pressa
i wanna be with you
aqui, aqui, aqui

POÉTICA
como as margens infindas de um poema
escrito em linhas transversais
embora distantes
nossas cidades
falam a mesma língua

A CIDADE
a vida aqui é sempre amena
a rotina se repete todos os dias
mesmo jeito
sob o sol quente das tardes
flamejantes
as crianças festejam a infância das horas
sem grandes estardalhaços
nas ruas disformes
casinhas enfileiradas
todas iguais
o rapaz da bicicleta atravessa a rua
buzinando pra entregar o pão
a menina corre triunfante
pés descalços
seu mundo comportando
eternidades
aqui há sempre alguém em silêncio
porta de casa
espiando a vida que corre
lado de fora
embora tenazes
ninguém dá-se ao luxo de sonhar
coisas grandes
a vida punge sem requintes
nesse lugar repleto
de esperas
MOLHAÇÃO
a previsão do tempo faz
promessa de chuva ainda
longínqua
joelhos prostrados
tenazes e vigilantes
os homens antecipam a mística
dos que tem pressa
e fazendo vênia aos céus
ecoam o canto das águas
deus como fiel escudeiro
exara a ordem divina:
março adentro
a força da chuva nos atravessa
rasgando o chão
fazendo da terra rios-meninos
com seus imensos e caudalosos
olhos d'águas
em tempos de chuva no sertão
esperanças resvaladas
entre céu e chão

Áquila Emanuelle

A grandiosidade do Universo

Ler Pulsares é adentrar a grandiosidade do Universo. E aqui Universo refere-se à confluência de estrelas, sois, planetas, satélites. Ingressar nestes poemas, é se perceber envolvida num desejo-tensão de compreender o todo. Tal processo, no entanto, pacifica o estado inicial de excitação e empurra leitores a viver a experiência literária que o livro proporciona. Já na primeira parte deste ingresso, aprende-se que as estrelas, ao morrerem, geram energia. E isso as faz pulsar. Este processo de morte revela-se no “parir-se a si mesma” e na compreensão de que a transformação é talvez o único paradigma da vida humana. Assim, do silêncio à dor, passando pela escrita como ato de liberdade, a voz poética extingue-se a si mesma e renasce, através da descoberta da amplitude desértica do viver, se alinhando à fênix e aprendendo com as águas o risco de existir. Depois, em Siderações, enxergam-se os efeitos dos Pulsares sobre as vidas humanas, daí celebram-se a luz, as recordações, as memórias, a festa, o mundo. Tudo é sankofa, tudo se transforma na compreensão de que presente, passado e futuro, conjugam-se em tempo unívoco. Por fim, o Eclipse revela o Sol, a Lua e a Terra, que numa coreografia sensual revezam-se para bloquear a luz e ora ocultar a Terra, ora avermelhar a Lua, ora escurecer o Sol. E este processo, que se inicia sempre pelo fim, explode em gozo, gerador da pluralidade de vidas.

Luciana Moreno (Professora Adjunta da Uneb)

Texto da orelha do meu livro Pulsares (Caramurê, 2019)

 

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Ilustração de Fernando Oberlaender para o livro Pulsares.