Arquivos

Sobre importâncias

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar.


Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.

Manoel de Barros (Memórias inventadas. Segunda infância)

Foto de Kat Jayne no Pexels

O homem que brigou com o vento

No caso, o homem sou eu mesmo. E a culpa é fácil dizer… é do vento! Aconteceu o seguinte: desde que resolvi dar um tapa no visual da casa e instalar um forro no teto, a coisa toda ficou estranha. A casa, é verdade, ficou mais bonitinha, mas eu não fazia ideia de que, com esse simples movimento de renovação da parte de cima e interna do lar, estaria eu criando um novo mundo.

Pequenos apocalipses sobre minha cabeça. Defini primeiro assim. Depois comecei a andar com passos de detetive pelos cômodos, as mãos para trás, como imagino ser o gesto atemporal dos filósofos, perscrutando tudo que estava acima de mim e, supunha, no entrelugar da casa. Invisíveis criaturas ressuscitando o Axé no meu telhado? Invasão de um exército alienígena, cujas armas são perturbações sônicas? Castigo divino pelo meu ateísmo? A conclusão veio num sopro: eu estava aborrecido, três dias sem dormir, ou melhor, despertado em intervalos na madrugada pelas trombetas do além.

Tinha que fazer algo. Instalei a escada e subi no telhado. Tarefa complicada. Logo me vi imitando Tom Cruise na famosa cena do filme Missão Impossível. Braços estendidos me transformando na cruz de minha própria penitência. Eu fui arrumar o problema e quase que arrumo mesmo um problema. Com o peso de minha mão, o telhado estalou e uma rachadura surgiu. Recuei. Veja só a falta de efeitos especiais hollywoodianos na vida prática de uma pessoa.

Embora meu pai tenha me treinado desde a infância para dominar as técnicas de resolução de qualquer problema futuro de engenharia civil amadora (não sou um engenheiro civil formado, sou apenas cidadão), sinto que o decepcionei, pois mal consigo fixar um prego na parede sem sair com avarias no meu próprio corpo.

Para mim, era difícil aceitar que o ar atmosférico que se desloca naturalmente, seguindo determinada direção, estivesse simplesmente agindo conforme seus movimentos de existência. Cada lufada sacudia o meu juízo em busca de meios para deixar de sentir o vento forte e prolongado que produzia um universo musical distante do meu gosto.

Prosseguia combativo.

Um amigo que entende de telhados me disse: Faça isso, isso e isso. E então eu fiz isso, isso e isso. Nada. Rimara, minha companheira, mais resignada, me falava: Não brigue com o vento, amor. Não tem jeito. Vamos nos adaptar. Aquela paciência de Monja Coen me deixava mais agitado do que a própria corrente de ar que me atormentava. Tá certo, eu dizia. Mesmo sabendo que, para mim, não estava nada certo. Longe disso. Por outro lado, nosso contraste diante do problema me revelava: o mundo não tem só a forma de si mesmo, tem também um pouco da nossa forma, e esse nosso jeito de ver as coisas negocia com a forma do mundo.

Depois das inúmeras tentativas que, para mim, resultaram falhas, minha companheira me diz pela milésima vez: Melhorou, amor. Relaxe. E eu, contrariando a regra de sempre ouvi-la (ela quase sempre tem razão), ainda às voltas com possíveis resoluções definitivas contra o vento malévolo, me agarro a essa verdade, que só ela acredita: É, melhorou.

Evanilton Gonçalves (autor de Coisas que desaprendi com o tempo. Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, 08/09/2020)

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay 

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 1.)

Imagem de beate bachmann por Pixabay

O lobo mau

Eu vi o lobo mau.
Foi? Quando?
De noite.
De noite? Na floresta?
Não, em meu quarto.
Puxa! E aí?
Ele estava conversando com Chapeuzinho e depois saiu na carreira.
Foi pra casa da Vovozinha.
É.
E então? O que é que você fez?
Eu também fui.
Foi? E quando chegou lá?
O lobo disse: Abra a porta, sua Vovó!
E ela abriu.
Não. Não abro, não abro. Pois eu vou soprar. E derrubou a casa da Vovó.
Foi?
E comeu a Vovó.
Inteirinha?
É. Só tirou o vestido dela, pra não engasgar.
Ahn! E Chapeuzinho?
Chapeuzinho ficou se balançando na rede.
Na rede?
Na varanda.
Na varanda da casa? Mas o lobo não havia derrubado a casa com um sopro?
Foi.
E pode isso?
Ah, pai, você não entende nada. As pessoas grandes acreditam em tudo!

Antonio Brasileiro (“O menino no guarda-roupa”)

Imagem de 
Mauro Borghesi do 
Pixabay 

Estátua!

Às vezes me sinto um solitário à espreita, tentando capturar o exato momento em que tudo seja mais simples. Agora mesmo penso na época em que alguém colocava uma música animada enquanto eu e minha turma dançávamos como se não houvesse amanhã até que havia a pausa e tínhamos que congelar ao comando de: ESTÁTUA! Não lembro de sair vencedor nessas brincadeiras. Pouco importa. A linha do tempo me diz que o essencial é a alegria compartilhada, o riso solto, a felicidade de estar no mundo com pessoas felizes ao redor.

Quando nos encarávamos naquela simulação de imobilidade total, éramos pequenas figuras de carne e osso, com uma historinha iniciada e o anseio de fazer os outros olharem para nós com atenção sem igual. A música tocava outra vez e então outra vez nos movíamos com alegria no mundo. Sinto falta daquele sorriso fácil. Cresci um tanto indiferente às figuras esculpidas em mármore ou fundidas em metal que servem, eu sabia apenas, como banheiros para as aves que socializam nas praças.

Acontece que fui aprendendo, pouco a pouco, sobre o fato de, muitas vezes, a História oficial ser a narrativa dos vencedores, que pode ser entendida por vitória de mercenários, escravocratas, genocidas, carrascos, assassinos, sequestradores, torturadores e toda uma leva de gente má, fantasiada de cidadão de bem, que pisou na terra para espalhar dor e fazer uma criminosa fortuna com a exploração alheia. Não há virtude na exploração. Mas essas pessoas estão aí, soltas pela cidade, em seus pontos fixos de existência macabra. Só falta inventarem uma agência de turismo que guie as pessoas por esses lugares onde os meliantes históricos habitam:

— Bem, pessoal. Esse aqui é mais um que construiu uma reputação positiva pra si e contou com ajuda de cúmplices pra esconder suas falcatruas. Sim, sim, no fim da vida, esse também fez vultuosas doações pra caridade, o que, como já sabemos, lhe garantiu estadia aqui e, supostamente, uma outra no condomínio celestial tão disputado.

Ao olhar com mais atenção a materialização da cidade onde meu corpo habita, é assustador ver as homenagens que a História oficial me oferece. A cada esquina, um desvario petrificado me expõe ao terror de sua existência. Enquanto, cada vez mais, pessoas se unem contra o racismo estrutural, em prol do bem-estar coletivo, tem quem fique inconformado com a possibilidade de remoção e realocação museológica de certas estátuas e ache injusto deixar de prestar homenagem a pessoas cuja grandeza foi nos legar um rastro de sangue e sofrimento.

Como explicou o professor, jurista e filósofo Silvio Almeida em participação memorável no programa Roda Viva: “Se você tem um monumento dentro da cidade, é uma indicação de quem você quer que esteja ali, a quem você faz reverência naquele espaço”. Não é estranho que bandidos históricos tenham lugar de honra em nossa cidade? Se olharmos com atenção certos nomes de ruas ou as instalações de figuras tridimensionais expostas em terras brasileiras, o susto é garantido, o constrangimento também deveria ser.

Evanilton Gonçalves é autor de Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S). A crônica acima foi publicada no Jornal A Tarde do dia 09/09/2020.

Imagem de Wildschuetz por Pixabay 

O homem; As viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra a terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 2.)

Image by skeeze from Pixabay 

A quem confiar minha tristeza?

Li há anos um conto do escritor Anton Tchekhov que não me saiu da cabeça. Chama-se Angústia. A breve narrativa começa com o cocheiro Potapov, uma espécie de taxista em nossos tempos, coberto de neve, imóvel em seu veículo, enquanto aguarda passageiros para transportar de um lado a outro da cidade. Talvez se pudesse pensar a mesma cena friorenta aqui em terras nordestinas, se levarmos em conta a metamorfose geográfica aplicada pela pessoa que ocupa o cargo de ministro interino da Saúde de nosso País.

Em síntese, é o seguinte: Potapov sofre pela recente morte de seu filho. Em meio à tristeza, tenta desabafar sobre sua perda com as pessoas que ele transporta ou encontra pelo caminho, mas ninguém lhe dá ouvidos. Gente de diferentes classes sociais, de militar a cocheiro como ele, ignora a dor do trabalhador . Potapov segue, mesmo em evidente estado melancólico, na labuta, com o coração em pedaços. Após o insucesso nas tentativas de partilhar seu sofrimento e receber um gesto solidário, ao fim do expediente, em casa, conta finalmente a seu cavalo sobre a dolorosa perda do filho.

Em 2020, na vida real, a indiferença sobre a dor alheia parece nos envolver na mesma intensidade. Uma espécie de hierarquia da vida se faz presente, cujo valor é medido pelo que o filósofo camaronês Achille Mbembe denomina por necropolítica. No cenário pandêmico em que estamos todos inseridos, os exemplos de aversão ao luto alheio beiram a psicopatia. Como pode alguém, em sã consciência, tripudiar da dor dos outros? Afinal, o que é viver em sociedade?

O isolamento necessário para a manutenção da saúde coletiva soa como ofensa aos ouvidos de alguns cidadãos. Enquanto parte da sociedade luta em prol do bem comum, fazendo de tudo para salvar vidas de brasileiros e brasileiras, um outro tanto faz questão, por um lado, de se fantasiar com as cores nacionais, como se assim exaltassem uma incomparável brasilidade, e, por outro lado, exigem o direito à ferocidade, o direito de berrar, até mesmo para alguém de luto, como faz um personagem insensível no conto de Tchekhov: “Todos vamos morrer”.

No Brasil que não faz questão de acolher brasileiros e brasileiras num momento tão difícil, resistir é lutar contra a normalização da brutalidade. É o que fez, por exemplo, o taxista Marcio Antonio, no Rio. Ao ver uma pessoa desrespeitar a homenagem às vítimas da pandemia na praia de Copacabana, foi lá e recolocou as cruzes no lugar, exigindo respeito também pela morte do seu jovem filho, uma das vítimas da covid-19. Enquanto provocadores o adjetivavam com o intuito de o insultar, sem nenhuma empatia por sua dor, ele seguiu firme demonstrando o que todos nós precisamos, independente de vieses políticos: civilidade.

Uma chuva de indiferença contamina nosso solo. Vai passar. Outro mundo é possível. Acredito nisso. Ao mesmo tempo, na medida em que milhares de pessoas sofrem suas perdas por causa da pandemia, ao passo que o Chefe do Poder Executivo do País vive entre a negação e o eufemismo, quando não, o menosprezo à situação ou o delírio com a panaceia, penso o versículo de um canto da Igreja Russa usado como epígrafe no conto de Tchekhov ecoando na cabeça das pessoas: A quem confiar minha tristeza?

Evanilton Gonçalves (A crônica acima foi publicada no jornal A Tarde, no dia 07/07/2020.)

Imagem de Alexandra Haynak por Pixabay 

Assombros de si – três poemas de Adriano Eysen

NÁUSEAS

Há uma dor que galopa sem patas
em cada parte de mim.
Há uma ventania vista
nos arredores da alma,
tudo está além do sentido
nada é paisagem, nada me acalma.

Todas as multidões são ausência,
todos os homens vestem máscaras
neste teatro móvel da vida.
Falta-me céu, tudo é abismo, impaciência.

Há silêncio no deserto de mim
sou tantos entes partidos,
sem rosto, sem metafísica, sem fim.

Então, arrumar os fantasmas aqui dentro.
Partir cheio de náusea,
acotovelando lembranças de ontem
fincadas numa vontade de ser eu...
CONVERSA SOLITÁRIA

Vou partir para o poente
de mãos dadas com meus mortos
para reinventar verdades.

Vou-me embora sem fantasmas,
livre de multidões e deuses
para rever o menino que fui.

Parto montado no vento
rumo aos olhos azuis de minha mãe,
numa viagem dentro de mim mesmo.
ASSOMBROS DO POENTE

São quase desertas as casas.
Faltam uroras e nascentes nas janelas,
mas nos fios elétricos os pardais anunciam poentes...

São quase abissais os sonhos dos amantes.
Amar é uma forma de inventar cicatrizes
dentro da alma calada...

São de plumas as estrelas
que deslizam no corpo dessa cegueira de ser,
qualquer coisa perto do nada.

Como pude quereer todas as verdades
e ser mentira de mim mesmo?
Longe de tudo escrevo porque a vida é um golpe de navalha...
Adriano Eysen (Assombros do poente, Mondrongo: 2019)

Amo como o amor ama

               MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...

Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.

Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)

Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                   buscas
E encontras cinzas.

Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.

Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.

Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.

Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!

                FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
                MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
Fernando Pessoa
Imagem de Deflyne Coppens por Pixabay 

Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa

Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…

Vinicius de Moraes."