Os meus olhos são uns olhos. E é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns. Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz. Onde uns vêem luto e dores, uns outros descobrem cores do mais formoso matiz. Nas ruas ou nas estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros gnomos e fadas num halo resplandescente. Inútil seguir vizinhos, que ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D. Quixote vê gigantes. Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes. António Gedeão
Arquivos
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.
Manoel de Barros (Poesia Completa: Leya, 2011)
Enegrescência 2
LOHANA KÁRITA Pequeno canto de flor Estou nua. Existo em infinitas flores que despedaço e lhe entrego. Tenho nas mãos feridas, todo o tempo e memória, olha! Abro-as como o peito, os dedos e o ventre. Estou nua, para que eu não me encerre em meus fins, lhe entrego. Toma-me os olhos com cuidado, porque sou terra, mas também sei voar. Casinha A minha vingança é de silêncio marchetada em Oratório adornado por pequeníssimos sonhos não vividos que tem por dentro de si Chama de lume que não se apaga jamais E ao invés de arder Chora Desenha na mágoa mil santos. Perdão, não, que meu coração não é terra de ninguém! Minha vingança é de silêncio, amor, palavras... eu nunca te darei.
LOUISE QUEIROZ Descalço O tempo na palma dos dias ainda o silêncio das crianças mortas. Reticente Meu choro hoje amanheceu rígido, sinuoso. É quando deito meus olhos na palma das palavras que lanço um grito ruidoso.
PATRÍCIA MARIA Despejo Vomito você de todas as formas. Hoje regurgito seus restos Em versos. Expurgo de mim os fios De teu perfume, Fiandeira de novos destinos Teço e desteço o que quero. Quero apenas tua ausência Nos poros da casa. Isento-me de ti. Dou-te os cravos da lápide e da lapela Sem luto, enfeito e fecho o Caixão de memórias. Rio de desejos Vestida de dores entrego-me ao doce Enjoo do amor. Eu água escorro, por entre Braços, pernas e coxas lanhando Sua pedra corpo. Tu emaranha-se no ciliar de meus cabelos E se alimenta com o que tenho de melhor: O vinho colhido da flor mais delicada. Findado o banquete vais. Peixinho empapuçado de mim. E Eu? Eu fluo, posto que ainda sou um Rio de Desejos.
VIVIANE MORAES Domingo não porque há segundas-feiras mas porque a campainha toca deixo entrar e ela se instala no meu ser. Escoro em seu ombro, digo: obrigada solidão por me fazer companhia.
In: Enegrescência: coletânea poética. Editora Ogum's Toques Negros, 2016.
Enegrescência
DAVI NUNES IV Eu tive a cabça da faraó aconchegada em ternura de amor sobre o meu peito Beijei o veludo delicado do seu cabelo Precorri com os olhos de amante a beleza azeviche do seu corpo fui feliz. IV Meu corpo estava dentro do relicário no Vale dos Reis não havia interferência dos homens gelos na minha morte No Vale dos Reis virava deus-eterno Agora sob o teto quente dessa casa no gueto Há a interferência dos homens gelos na minha morte e não existe mais o relicário a me guardar.
GONESA GONÇALVES Alfaiate Tece nos seus lábios essa boca úmida que faminta te devora o cheiro aos suspiros costura minhas curvas no estreito desse olhar cálido. Dobra nos seus braços essa ebulição incômoda e des-tece com os dedos a renda fina que me encobre o íntimo. Dos dias santos Domingo é um dia triste. A saudade se inscreve nas paredes desbotadas e o suicídio no meu corpo. Domingo não se cozinha nessa casa há arroz e feijão e ausência frigindo lentamente há meses. Domingo essa casa é órfã não há barulho dos seus pés chegando e surrando o tapete com seu chinelo de couro. Domingo passa devagar pois não tem vento nem maré para levar as angústicas. É domingo e eu estou na cama tentando curar as enfermidades da alma. É domingo e você não está limpando o quintal. A folhagem cresce acolhendo a janela triste. É domingo... Ponha mesa para dois: Eu e minha solidão. É domingo e todos os amores renascem eu mastigo o amargo e os espinhos de quem está sozinho.
LIDIANE FERREIRA Setembro Lábios em flor umedecem estações Borboletas buscam sombra, com tremores abraçam tronco macio. Roubam-lhe açúcares, calores, amores, a calmaria depois do cio. Bem, 10 Vestindo armaduras, no paradoxo dos estatutos, o entre-lugar... Lugares que jamais fui. Entre trocas e trocos carros e amarelinhas (dez)construo leituras (Dez)continuidades monetárias. Rendendo ao sol por dez doces vendendo, vendido roubado. Dez, vinte, trinta centavos O semáforo solitário anuncia o início de uma amarga brincadeira.
In: Enegrescência: coletânea poética. Editora Ogum's Toques Negros, 2016.
A cidade pelo olhar de Celso Borges – poemas de “O futuro tem o coração antigo”
o futuro tem o coração antigo porque gullar ainda não escreveu o poema sujo e gonçalves dias não conheceu sabiás empalhados porque os azulejos portugueses encardidos nos observam do alto de sua nobreza rachada
como se sabe que o tempo passou? alguma coisa já não é a mais a mesma
era uma vez (n)uma cidade... um déja vu vertical
o centro da cidade é um ciclope se mirando no espelho: narciso em estado terminal
o tempo não pe(r)de tempo
Celso Borges (O futuro tem o coração antigo, 2 ed., Pitomba Livros e Discos, 2013)
Diário da alma humana
A experiência do confronto que se alastrava pelo país interessava a De Rienzi não apenas por sua visão marxista da sociedade, mas também porque lhe oferecia elementos de análise para melhor compreender os mecanismos psicológicos do homem diante da violência. Pressionados pelas tensões derivadas da repressão militar, alguns militantes da esquerda, conhecedores das convicções ideológicas do psiquiatra, para, ao menos, obter pela análise a catarse do medo. Não era fácil para rapazes em muitos casos ainda adolescentes enfrentar a virulência da repressão e se tornarem eles próprios violentos, levados pelo idealismo da resistência. Ativistas políticos, não viam outra saída para o impasse em que o país mergulhara senão radicalizando o enfrentamento por meio da luta armada, heroicos mas inexperientes.
A guerra era uma anomalia social tão poderosa, que chegava a neutralizar o medo essencial do homem, que é o medo da morte. De Rienzi estudava há tempos esse fenômeno, convencido de que só através do socialismo a sociedade criaria condições de convivência decente. Ele não tinha interesse algum em colocar em livro suas reflexões sobre o assunto, que seus conhecimentos não cobririam, mas apenas em tentar entender as reações psíquicas dos homens postos diante de situações extremas, que estimulavam a irracionalidade instintiva até suas últimas consequências.
Pelo depoimento de algumas vítimas, De Rienzi se preocupava especialmente com a questão da crueldade intrínseca da tortura. Que impulsos poderiam levar um homem aparentemente normal, educado para relações civilizadas sob a égide de uma religião e de uma moral, a se transformar num torturador, capaz das mais absurdas perversões para arrancar confissões sempre duvidosas, pelos meios empregados para obtê-las? Que limites haveria entre a presumível convicção de um dever a cumprir ou a simples irrupção dos primitivos impulsos da natureza humana, incapaz de bloquear sua feroz animalidade congênita?
Pelas histórias que registrara, narradas inclusive pelos padres da Igreja progressista que repudiavam o regime, De Rienzi pudera organizar um pequeno dossiê pessoal sobre os métodos de tortura. Para ele, tinha ficado claro que, através da disseminação dessas práticas, o espírito do nazismo era uma realidade na vida dos povos, para além do rótulo do regime que se impusera na trajetória política da Alemanha. Nas guerras ou na paz, o pathos nazista do ódio sempre estivera presente nas relações entre os homens, individuais ou coletivas, entre pessoas ou nações, não se limitando à fase histórica de exacerbação do sentimento nacionalista de um país dominado por uma liderança fanática, revanchista e inescrupulosa, que institucionalizou a crueldade do Estado.
De Rienzi, na etapa mais aguda da repressão, recebeu para análise ex-prisioneiros portadores de sequelas psicológicas e morais decorrentes das torturas, notadamente rapazes entre 18 e 25 anos de idade, pois era grande o número de jovens entre os militantes da luta armada, integrantes dos vários grupos de resistência espalhados pelo país. Pôde, assim, elaborar um registro pessoal dos relatos que mais o impressionaram. Os torturadores não se limitavam a afligir a vítima com seus monstruosos métodos e instrumentos. Não era incomum que as transformassem em cobaias, durante sessões que representavam verdadeiras aulas para novas turmas de agentes da repressão. O aprendizado se fazia por meio da exibição de filmes e “slides” sobre as sevícias, seguidas de ensinamentos práticos no corpo de prisioneiros.
Tal como ocorrera nas prisões dos castelos da Idade Média e nos calabouços da Santa Inquisição a serviço das verdades da Igreja, as sessões podiam ser individuais ou coletivas, com o objetivo único de arrancar as confissões e eliminar resistências.
Em qualquer dos casos, o sofrimento era incomensurável. Só, diante dos seus algozes, no interior de um cubículo propositadamente sombrio, desejoso de uma misericórdia inalcançável, o prisioneiro ia sofrendo o esfacelamento de sua personalidade. Os mais corajosos provocavam a fúria dos torturadores, num processo implacável e continuado, que transformava a brutalidade profissional num ódio pessoal incontrolável, mais feroz à proporção que a resistência às confissões aumentava.
[…]
João Carlos Teixeira Gomes (In: Assassinos da liberdade. Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2008)
Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia
Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há (-de alguém) confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochet das coisas… Intervalo… Nada…
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sofrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Sim, crochet…
Bernardo Soares (O livro do desassossego)
Três poemas de Michel Yakini
alembramento
alembro de um tempo em que o mundo era maior, bem maior e cabia dentro do nosso abraço alembro do dia em que vi um canarinho lacribeijando o sol lhe dando de beber alembro de cores minhas ausentes onde não esbarro mais alembro que eu gostava de vagar por aí a ouvirtude o que o silêncio dizia até uma vez ainda miúdo me ensinaram que "alembrar" é um erro! depois disso: tem coisa que não lembro mas do resto me alembro tudo.
todo livro é uma lápide, a menos que alguém o acorde.
cheiro d'água
escreverei um poema sem uma palavra sequer em uma grafia qualquer sem batizar um problema sem caneta, giz ou lápiz tampouco nenhuma pena esse poema escrito jamais será contemplado não terá verso aclamado e por ninguém será lido não terá rima, nem métrica nem há de ser o mais bonito será escrito na calma em gotas lacrimejantes contornará meus instantes até escorrer pela palma secando todas as dores e umedecendo minh'alma.
Michel Yakini (Acorde um verso. Edce, 2015)
Os Estatutos do Homem
Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira. Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança. Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino. Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor. Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco. Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã. Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor. Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem. Thiago de Mello
Ombela: a origem das chuvas
Dizem os mais velhos que a chuva nasceu da lágrima de Ombela, uma deusa que estava triste. – Estou triste e vou chorar... mas para que as minhas lágrimas não matem os bichos nem as pessoas que vivem na Terra, vou deixar que tenham muito sal e que alimentem os mares. O pai de Ombela, ao saber da sua tristeza, veio falar com ela: – Minha filha, a tristeza faz parte da vida. – Eu sei, pai. Mas quando estou triste, dói-me o peito. O pai de Ombela sorriu. Depois apagou o sorriso do seu rosto e disse: – Que sorte, minha filha, que só te dói o peito. – E tu, pai, quando estás triste o que acontece? – Fico mais pequenino, filha. – Os deuses podem ficar mais pequenos? – Podem – respondeu o pai de Ombela. – Os deuses, com o passar do tempo, ficam cada vez mais pequenos. Ombela limpou sua primeira lágrima e quase se esquecia de chorar. – Não te esqueças de chorar – lembrou-lhe o pai. Assim como a lua tem muitas faces, no mundo, por vezes, faz Inverno e outras vezes faz Verão. Mesmo nós, os deuses, não podemos sempre estar felizes. – Se é hora de sorrir, deves sorrir. Se precisas de chorar, deves chorar. Ombela começou a chorar. Tinha muitas lágrimas e parecia muito triste. Chorou durante algum tempo e assim se encheram os oceanos dessa água tão salgada. – Penso que é hora de parar de chorar. Não sei se choro porque ainda estou triste ou porque gosto tanto de olhar o mar... O pai de Ombela, ao saber da sua dúvida, veio falar com ela. – Minha filha, quero que saibas mais uma coisa: as lágrimas não nascem dos olhos apenas quando estamos tristes. Existem também as lágrimas de felicidade. Quero mostrar-te uma coisa. O pai de Ombela pôs as suas mãos em concha e mostrou-lhe as flores, as árvores, os animais e tudo o que na Terra precisava de água doce. Com o seu dedo desenhou alguns rios. Depois inventou os lagos e lagoas. – Estes riscos que vês na Terra, e estes lugares que parecem buracos vazios, esperam agora novas lágrimas tuas – Parecem caminhos e lugares de águas... – Sim, são caminhos e lugares e águas. – Vamos chamar-lhes rios, lagos, lagoas – sorriu Ombela. – Já não estou tão triste e ainda tenho lágrimas comigo. – Agora vou fazer chover sobre a terra: a lágrima da tristeza vai chamar-se “água salgada”. A nova lágrima será a “água doce”. O pai de Ombela sorriu e retirou-se. Dizem os mais velhos que a chuva é sinal de que Ombela está a chorar. Se essa chuva cai sobre o mar, Ombela está triste. Se cais sobre a terra, sobre os rios, sobre os lagos, Ombela está feliz. Dizem que Ombela teve muitas filhas... E que todas sabem fazer chover.
Ondjaki (Ombela: a origem da chuva. Pallas Mini, 2014)