Arquivo de Tag | Poesia brasileira contemporânea

Home office

pilhas de trabalho sobre a mesa
amordaçando dores.

para ouvidos cegos
sentir caiu em desuso
melhor mesmo é produzir.
  
felicidade:
cinco publicações em periódico
de excelência.
  
chove no meu escritório.
a água devora os papéis
abre caminhos.
  
deixa um rastro de vida
que acompanho
contemplando o Sol
que vai nascer.
Lílian Almeida 
Foto de Ithalu Dominguez no Pexels

Força e simplicidade na poesia de Geni Guimarães

Não sou racista.
Sou doída, é verdade,
tenho choros, confesso.
Não vos alerto por represália
nem vos cobro meus direitos por vingança.
Só quero,
banir de nossos peitos
esta gosma hereditária e triste
que muito me magoa
e tanto te envergonha.

Minha Mãe

Gosto da inocência dela:
Benze crianças,
Faz simpatias,
Reza sorrindo,
Chora rezando.

Gosto da inocência dela:
Apanha rosas,
Poda os espinhos,
Coloca nas mãos,
De meninos branquinhos.

Gosto da inocência dela:
Conta histórias longas,
De negros perdidos,
Nas matas cerradas,
Dos chãos do país.

Ama a todo o mundo,
Diz que a ida à lua,
É conto de fada.

Gosto da inocência dela:
Crê na independência,
E é tanta a inocência,
Que até hoje ela pensa,
Que acabou a escravidão.
… Inocência dela…

Integridade

Ser negra
Na integridade
Calma e morna dos dias

Ser negra
De carapinhas,
De dorso brilhante
De pés soltos nos caminhos

Ser negra
De negras mãos
De negras mamas,
De negra alma.

Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.

Ser negra,
Do verso e reverso,
De choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam a terra.

Negra
Puro afro sangue negro
Saindo aos jorros,
Por todos os poros.

Geni Guimarães

Foto de 3Motional Studio no Pexels

Assombros de si – três poemas de Adriano Eysen

NÁUSEAS

Há uma dor que galopa sem patas
em cada parte de mim.
Há uma ventania vista
nos arredores da alma,
tudo está além do sentido
nada é paisagem, nada me acalma.

Todas as multidões são ausência,
todos os homens vestem máscaras
neste teatro móvel da vida.
Falta-me céu, tudo é abismo, impaciência.

Há silêncio no deserto de mim
sou tantos entes partidos,
sem rosto, sem metafísica, sem fim.

Então, arrumar os fantasmas aqui dentro.
Partir cheio de náusea,
acotovelando lembranças de ontem
fincadas numa vontade de ser eu...
CONVERSA SOLITÁRIA

Vou partir para o poente
de mãos dadas com meus mortos
para reinventar verdades.

Vou-me embora sem fantasmas,
livre de multidões e deuses
para rever o menino que fui.

Parto montado no vento
rumo aos olhos azuis de minha mãe,
numa viagem dentro de mim mesmo.
ASSOMBROS DO POENTE

São quase desertas as casas.
Faltam uroras e nascentes nas janelas,
mas nos fios elétricos os pardais anunciam poentes...

São quase abissais os sonhos dos amantes.
Amar é uma forma de inventar cicatrizes
dentro da alma calada...

São de plumas as estrelas
que deslizam no corpo dessa cegueira de ser,
qualquer coisa perto do nada.

Como pude quereer todas as verdades
e ser mentira de mim mesmo?
Longe de tudo escrevo porque a vida é um golpe de navalha...
Adriano Eysen (Assombros do poente, Mondrongo: 2019)

Todos os nós: alguns poemas de Maria Luiza Maia

estrutura

não sabe precisar a data
mas diz que é como se praticamente
tivesse nascido
com esse nó bem no meio das vísceras.

se ela o desamarra
depois de uma vida inteira
o que acontece?

 

algumas conclusões

talvez a gente não dê mesmo conta
da imensidão
desse mundo.
o universo de um poema
de poucas linhas
é o suficiente
para nos caber.

 

para Clara V

aquele pedaço, Clara
que achávamos que já fazia parte do meu corpo
foi descosturado à força
ponto por ponto
um tecido descolado de outro tecido.

sobraram restos de cola seca e endurecida
e de linha.

embrulhei tudo num pano bonito e devolvi.
nunca foi meu.

 

para Clara VIII

Clara,
ainda que mecaniamente seja difícil alcançar
algumas partes
sua mão pega o jeito da costura
em algum momento.

e eu esqueci de te avisar:
depois que a gente se costura
é preciso um tempo para que a pele
se acostume com os pontos.

 

Maria Luiza Maia (Todos os nós. Penalux, 2019)

Pulsares

Pulsares, meu primeiro livro de poesia, chegou neste dezembro, batizado pelas palavras da poeta Rita Santana e da professora e pesquisadora Luciana Moreno, laureado pelo Edital Caramurê de Literatura 2019 e embelezado pelas imagens do artista plástico Fernando Oberlaender. Um livro que transita pela intensidade dolorida de existir, pelo cotidiano que é beleza e tristeza, pelo amor  e sensualidade. Pulsares fala de Vida e das tensões, tesões e expansões que é estar nela. Partilho três poemas de Pulsares.

 

Crisálida
Grávida do ser que me habita
vou parir a mim mesma.
Outra.

Quando a lua anunciar negruras
já serei o que sou.

Mariposas cintilam lilases
voos e auroras.

 

Festa
A chuva derrama seu canto.
Um bailado molhado
tamborila no chão.

 

Cio
A fêmea exala
o cheiro rubro
da vida.

 

Lílian Almeida (Pulsares: FB Pulicações, 2019)

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