Arquivo de Tag | Literatura afro-brasileira

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem.

Havia as misérias e as grandezas. Havia o amigo e o inimigo, o leal e o traiçoeiro. Havia muito de amor e de ódio. Havia muito de riqueza na pobreza, na miséria de cada um. E havia também a miséria que transcende a própria miséria, a miséria do egoísmo, da inveja, do ódio, do desejo assassino de liquidar, de acabar com o irmão.

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem. Do homem que não se descobriu em si próprio nem no outro. Havia a miséria que nem o amor de pessoas como Vó Rita, como Bondade e como Negro Alírio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver. Havia a miséria das pessoas que trazem o coração trancado para qualquer ato de amor. E essas pessoas acabavam atraindo para si o ódio de todos os demais. Fuinha era uma dessas pessoas.

Maria-Nova tinha muito medo de Fuinha. Sempre que passava em frente ao barraco dele apertava os passos. Uns diziam que ele era louco, outros que era maldoso, perverso, e que nada de louco tinha. Conversava, andava, falava, trabalhava normalmente. Aparecia no armazém de Seu Ladislau, tomava banho ali naqueles quartinhos em que os homens se banhavam, bebia uns goles de pinga, falava e até ria um pouco para alguns, e ia embora. Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos acordavam altas horas da noite com o grito das duas. Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas e batia até sangrar. Se elas choravam baixinho, batia até que elas gritassem e depois batia até que elas calassem.

A Fuizinha crescia temerosa, arredia. Uma vez Maria-Nova parou perto da cerca de arame farpado que havia em volta do barracão e Fuizinha ameaçou soltar alguma palavra, quase confidência de tão baixo que era. Maria-Nova escutou a voz do Fuinha e fugiu. Escutou depois um baque surdo no chão e os gritos da menina. Fuizinha crescia entre o choro e a pancadaria. Tinha o rosto todo marcado. E sua mãe era passiva e temerosa. Eles não recebiam nem faziam visitas. Bondade sempre passava por lá, demorava um pouco, mas nunca lhe permitiram ficar para dormir. Ele nunca esquecia das duas. Sempre ia lá no dia ou após o dia em que misteriosamente sumia da favela e retornava com dinheiro, alimento e balas para as crianças. Bondade era o único que as visitava. Vó Rita, antes, visitava-as também, mas depois que ela passou a viver com a Outra, nunca mais visitou ninguém.

Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a pancadaria na noite anterior. A mulher gritara, gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a voz do Fuinha:

– Agora silêncio.

A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha.

Maria-Nova tinha pavor dele. Houve quem tentasse falar com ele e Fuinha cinicamente respondeu que a filha era dele e que ele fazia com ela o que bem quisesse. No dia em que Fuizinha tentou aproximar-se de Maria-Nova, de noite, os gritos dela foram mais dilacerantes ainda.

Conceição Evaristo (Becos da memória, 3ed, Pallas, 2018)

Foto de Mateus Souza no Pexels

Força e simplicidade na poesia de Geni Guimarães

Não sou racista.
Sou doída, é verdade,
tenho choros, confesso.
Não vos alerto por represália
nem vos cobro meus direitos por vingança.
Só quero,
banir de nossos peitos
esta gosma hereditária e triste
que muito me magoa
e tanto te envergonha.

Minha Mãe

Gosto da inocência dela:
Benze crianças,
Faz simpatias,
Reza sorrindo,
Chora rezando.

Gosto da inocência dela:
Apanha rosas,
Poda os espinhos,
Coloca nas mãos,
De meninos branquinhos.

Gosto da inocência dela:
Conta histórias longas,
De negros perdidos,
Nas matas cerradas,
Dos chãos do país.

Ama a todo o mundo,
Diz que a ida à lua,
É conto de fada.

Gosto da inocência dela:
Crê na independência,
E é tanta a inocência,
Que até hoje ela pensa,
Que acabou a escravidão.
… Inocência dela…

Integridade

Ser negra
Na integridade
Calma e morna dos dias

Ser negra
De carapinhas,
De dorso brilhante
De pés soltos nos caminhos

Ser negra
De negras mãos
De negras mamas,
De negra alma.

Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.

Ser negra,
Do verso e reverso,
De choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam a terra.

Negra
Puro afro sangue negro
Saindo aos jorros,
Por todos os poros.

Geni Guimarães

Foto de 3Motional Studio no Pexels

Enegrescência 2

LOHANA KÁRITA


Pequeno canto de flor

Estou nua.
Existo em infinitas flores que despedaço e lhe
entrego. Tenho nas mãos feridas,
todo o tempo e memória, olha!
Abro-as como o peito,
os dedos e o ventre.
Estou nua,
para que eu não me encerre em meus fins, lhe
entrego. Toma-me os olhos com cuidado,
porque sou terra, mas também sei voar.


Casinha

A minha vingança é de silêncio
marchetada em Oratório adornado por
pequeníssimos
sonhos não vividos que tem por dentro de si

Chama de lume que não se apaga jamais
E ao invés de arder
Chora
Desenha na mágoa mil santos.

Perdão, não,
que meu coração não é terra de ninguém!

Minha vingança é de silêncio, amor, palavras...
eu nunca te darei.

 

 

LOUISE QUEIROZ


Descalço

O tempo
na palma dos dias
ainda o silêncio
das crianças mortas.

Reticente

Meu choro hoje
amanheceu rígido,
sinuoso.

É quando deito meus olhos
na palma das palavras
que lanço um grito
ruidoso.

 

 

PATRÍCIA MARIA

Despejo

Vomito você de todas as formas.
Hoje regurgito seus restos
Em versos.

Expurgo de mim os fios
De teu perfume,
Fiandeira de novos destinos
Teço e desteço o que quero.

Quero apenas tua ausência
Nos poros da casa.

Isento-me de ti.
Dou-te os cravos da lápide e da lapela
Sem luto, enfeito e fecho o
Caixão de memórias.


Rio de desejos

Vestida de dores entrego-me ao doce
Enjoo do amor.

Eu água escorro, por entre
Braços, pernas e coxas lanhando
Sua pedra corpo.

Tu emaranha-se no ciliar de meus cabelos
E se alimenta com o que tenho de melhor:
O vinho colhido da flor mais delicada.

Findado o banquete vais.
Peixinho empapuçado de mim.
E Eu?
Eu fluo, posto que ainda sou um Rio de Desejos.

 

VIVIANE MORAES

Domingo

não porque há segundas-feiras
mas porque a campainha toca
deixo entrar
e ela
se instala no meu ser. Escoro
em seu ombro,
digo:
obrigada solidão
por me fazer companhia.

 

In: Enegrescência: coletânea poética. Editora Ogum's Toques Negros, 2016.

Enegrescência

DAVI NUNES

IV

Eu tive a cabça da faraó aconchegada em ternura de
amor sobre o meu peito
Beijei o veludo delicado do seu cabelo
Precorri com os olhos de amante a beleza azeviche do
seu corpo
fui feliz.


IV

Meu corpo estava dentro do relicário
no Vale dos Reis
não havia interferência dos homens gelos
na minha morte
No Vale dos Reis
virava deus-eterno
Agora sob o teto quente dessa casa
no gueto
Há a interferência dos homens gelos
na minha morte
e não existe mais o relicário
a me guardar.

 

GONESA GONÇALVES

Alfaiate

Tece nos seus lábios essa boca úmida
que faminta te devora o cheiro aos suspiros
costura minhas curvas no estreito desse
olhar cálido.
Dobra nos seus braços essa ebulição
incômoda
e des-tece com os dedos
a renda fina que me encobre o íntimo.


Dos dias santos

Domingo é um dia triste.
A saudade se inscreve nas paredes desbotadas
e o suicídio no meu corpo.
Domingo não se cozinha nessa casa
há arroz e feijão
e ausência frigindo lentamente há meses.
Domingo essa casa é órfã
não há barulho dos seus pés chegando e surrando o
tapete com seu chinelo de couro.
Domingo passa devagar
pois não tem vento
nem maré para levar as angústicas.
É domingo e eu estou na cama
tentando curar as enfermidades da alma.
É domingo e você não está limpando o quintal.
A folhagem cresce acolhendo
a janela triste.
É domingo...
Ponha mesa para dois:
Eu e minha solidão.
É domingo e todos os amores renascem
eu mastigo o amargo e os espinhos
de quem está sozinho.

 

LIDIANE FERREIRA

Setembro

Lábios em flor
umedecem 
estações

Borboletas
buscam sombra,
com tremores
abraçam
tronco macio.

Roubam-lhe açúcares,
calores,
amores,
a calmaria depois do cio.


Bem, 10

Vestindo armaduras,
no paradoxo dos estatutos,
o entre-lugar...
Lugares que jamais fui.

Entre trocas e trocos
carros e amarelinhas
(dez)construo leituras

(Dez)continuidades monetárias.
Rendendo ao sol por dez doces
vendendo, vendido
roubado.
Dez, vinte, trinta centavos

O semáforo solitário
anuncia o início
de uma amarga brincadeira.

 

In: Enegrescência: coletânea poética. Editora Ogum's Toques Negros, 2016.