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Dedo de prosa com três mulheres de Profundanças

ProfundançasProfundancas-e1419979399105 reúne literatura, fotografia, mulheres e seus versos guardados, tudo sob a organização da escritora Daniela Galdino. Aqui, um dedo de prosa com três das autoras presentes na antologia. Brisa Aziz, Say Adinkra e Valquíria Lima respondem às seguintes perguntas: esta é sua primeira publicação?; o que lhe motiva a escrever?; o que Profundanças representa em seu fazer literário?; Profundanças é um adeus aos escritos de gaveta?; como é participar de uma antologia com autoras inéditas depois de ter publicado seu próprio livro? Profundanças está disponível para download no seguinte endreço: http://vooaudiovisual.com.br/projects/profundancas/

BRISA AZIZ

Sangria

Sangro.

Toda vez que a voz me falta

e o alheio

            de tão pessoal

me cala.

Sangro.

Gota a gota

             devaneios

e venenos destilados

do organismo de terceiros.

Sangro partes

de palavras mal trocadas;

Sangro um sal

               mouro

trancada num estado de atenção.

Sangro só

mais uma prenhez que explode,

se refaz enquanto ode

de si mesma

à solidão.

Confesso que não seja fácil escrever sobre a minha escrita, tão irregular e cheia de insignificâncias no mundo. Mas essa desimportância toda que me concentra também me eleva e me sublima: escrevo porque sim. 

Exercito a palavra e me esvazio em poesia. 

Profundanças é minha primeira publicação e representou uma parceria muito gostosa com Daniela Galdino, poeta e amiga de longa data, e, por extensão, a esse grupo de pessoas das letras e das fotografia. Dani, que é dada a grandiosidades, foi quem enxergou uma teia que une e compartilha de mulheres “versificadas”. Como boa funcionária pública sistematizou, “organizou o movimento”.

Não creio que Profundanças represente o meu adeus definitivo aos escritos de gavetas. Gavetas “sempre hão de pintar por aí” rssss Mas elas poderão se abrir quando em vez… espraiar em versos. Tomara.

Fotografia de Ana Lee Imagem disponível na internet

Fotografia de Ana Lee
Imagem disponível na internet

SAY ADINKRA 

Vulnerabilidade

Pior que sua fatal ausência

É conviver com a presença funda

da memória de nós aqui dentro

Pior que essa sua fulminante ausência

É a presença embriagada

dos cheiros de você

espalhados na paisagem

Pior, pior, muito pior…

É a tua presença, tombada

No patrimônio histórico de mim.

1-Essa é sua primeira publicação? Não. É a segunda
2- O que lhe motiva a escrever? As camadas da vida… essas tão óbvias, mas não necessáriamente acessadas.

3- O que Profundanças representa em seu fazer literário? Uma dança, uma ginga da escrita feminina…

5- Como é participar de uma antologia com autoras inéditas depois de ter publicado seu próprio livro? O primeiro livro tb foi a coletanea Ogums Toques Negros, não foi um livro meu.

Me senti honrada, por estar num grupo de mulheres, escritoras muito importantes​… um ato de rebeldia feminina!

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Fotografia de Fafá M. Araújo Imagem disponível na internet

VALQUÍRIA LIMA

Desacelerar de relógios

Chega um tempo que é de partida

Exalam fins.

Frutas doces caem… e apodrecem.

Papéis amarelos rasgam, desgastados.

Um velho licor açucara

e o som do telefone emudece.

Nasce um dia em que flores despetalam

e sementes novas vem nos encontrar.

Os barcos nossos desmoronam

todos os dias.

Mas, a busca não é de barco

É de mar!

1-Essa é sua primeira publicação? Não. Antes, publiquei o livro de contos “À Deriva”, pela editora Via literarum.

2-O que lhe motiva a escrever? Compreender o mundo que me cerca e a mim mesma. Muitas vezes, preciso escrever para existir e criar, externamente, o mundo que habita dentro de mim que, por sua vez, é uma relação direta com o que eu vivo e sinto.

3-O que Profundanças representa em seu fazer literário? Uma experiência mágica. Poder preparar o livro junto com as meninas e com Daniela. Tirar e escolher as fotos, escolher os poemas. Ver o resultado materializado. Ler as fotos das companheiras de poesia. Levar os poemas pra sala de aula. Tudo me engrandeceu demasiadamente.

4- Como é participar de uma antologia com autoras inéditas depois de ter publicado seu próprio livro? Como já disse, uma experiência mágica de compartilhar palavras e perceber que, como pra mim, elas são a ponte entre o sentimento e o mundo.

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Fotografia de Martinho Souza Imagem disponível na internet

 

Ler para se perder e se encontrar

          

Ao ler o livro Todas as cartas de amor da baiana Lilian Almeida (professora da UNEB), recém lançado pela editora Quarteto, foi inevitável cantarolar na mente uma linda canção de Edu Lobo e Chico Buarque intitulada Valsa Brasileira, cuja temática se assemelha ao livro de Lilian: um livro sobre buscas. Para mim, foi um modo de me revistar também de muitas formas, pois a música de Chico fora ouvida repetidamente num álbum da cantora Zizi Possi na época em que escrevia minha dissertação de Mestrado lá na minha cidade maravilhosa nos idos de 1995.

Como todo texto é trama, na trama tecida por muitos fios, me vi, leitora e mulher que sou, enredada em tantos outros. O livro de Lilian Almeida que se quer uma longa carta endereçada a um Amado (assim personificado pelo uso da maiúscula, transformando o que poderia ser ou um adjetivo ou mesmo um substantivo simples em substantivo próprio) nos apresenta uma narradora pós-moderna, habitando, atuando e interagindo no mundo público, mas angustiada pelas temáticas do mundo privado. A narradora corre as cidades, viaja a negócios, mas continua na espera: uma Penélope às avessas, de certo modo, pois altera parcialmente o mito da espera. Sua espera é em movimento. É ela e não Ulisses que corre o mundo, mas entre os números, as contas, os cálculos das empresas que representa (é isso que sugere o livro, pois nada é dito de forma muito esclarecedora já que é uma escrita labiríntica e feminina) a persona feminina parece insatisfeita e incompleta.

De dentro de casa ou dos hotéis, em viagem, a televisão acompanha uma sociedade retratada como solitária pela autora: “Quantas ilhas de pessoas estão à deriva neste prédio de quinze andares? Quantas telas de plasma oferecem companhia numa madrugada gelada de inverno?” Neste cenário há uma mocinha que se recusa, a saber, da crise imobiliária e aguarda um noticiário que fale sobre “ a epidemia da solidão das pessoas”, ou seja, mais uma vez cabe ao feminino clamar pela gravidade e importância do mundo privado cada vez mais silenciado pela lógica do capital, do mercado e do consumo. Assim como Antígona (no mito Grego) reclama enterrar seu irmão morto (Creonte) trazendo para pauta pública das leis da cidade o universo do familiar e do doméstico, Lilian Almeida, numa faceta pós-moderna de Antígona, afirma o que  tem sido o papel das mulheres até hoje:  trazer o privado para pauta pública, aliás, como já nos orientava o feminismo da diferença em Rose Muraro e Rosiska Darcy Oliveira (feministas brasileiras que merecem todo o meu respeito).

Entretanto, é da mesma TV de plasma que sai a voz do mocinho que embala o sono da narradora. E essa sentença no texto de Lilian conversa com um antigo argumento meu sobre a espera do príncipe. O príncipe dos contos de fada foi reeditado na minha geração (hoje entre os 40 e 50 anos) pelos filmes de seção da tarde, filmes da década de 40 e 50 , muitos musicais, nos quais a donzela (não há palavra melhor para definir aquelas personagens) tem sua vida transformada pela chegada do grande amor. Embaladas por este referencial temático as mulheres continuaram na espera, mesmo quando, como a personagem/narradora de Todas as cartas de amor, saíram em busca de autonomia e trabalho, elas ficaram sempre com a sensação de falta, caso não haja um homem em casa.

Mas em Todas as cartas de amor, desfaz-se o equívoco dos contos de fada e da sessão da tarde na rede globo na década de oitenta, já que a busca, a incompletude são características da nossa humanidade, e não uma demanda de mulheres. Talvez, por conta das etiquetas sociais (que dizem o que podemos ou não fazer de acordo com nosso sexo) só foi permitido às mulheres expressarem publicamente essa angústia. Mas as incompletudes, o desejo de companhia, a solidão nos grandes centros, tudo isso aflige homens e mulheres, heterossexuais, homossexuais, travestis, bissexuais, e toda a diversidade já abertamente discutida (felizmente) no século XXI.

E o final do livro de Lilian Almeida (não vou contar para não estragar a surpresa) revela que os finais de filme e contos de fada não podem aplacar essa busca maior, identitária, espiritual, humana e transcendental que nos fala desse nosso constituir em pessoas que somos: que começa com um desapego do primeiro grande amor: nossa mãe; depois passeia pelas investidas por amor na vida adulta com parceiros e parceiras e culmina sempre em nós mesmos. Eu e outro. Eu com o outro. Somos todos um!

Termino meu convite à leitura do livro de Lilian Almeida, dedicando este texto a Charles Meira que pacientemente esperou meu retorno à Cotoxó. Um abraço fraterno, companheiro Meira, pela acolhida jequieense que desafia a solidão das cidades.

 

Adriana Maria de Abreu Barbosa[i]

[i] Carioca, feminista, professora Adjunta da cadeira de Literatura da UESB-Jequié.  Coordenadora do Grupo Estudos de Teorias do Discurso(GETED) e integrante do CEL- Centro de Estudos da Leitura.

 

Esse texto foi originalmente publicado na Revista Cotoxó do mês de maio/2014.

Você pode conferir Uma dor de mim e Uma proposta obtusa, duas cartas de Todas as cartas de amor.