Arquivo de Tag | Literatura brasileira

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pilhas de trabalho sobre a mesa
amordaçando dores.

para ouvidos cegos
sentir caiu em desuso
melhor mesmo é produzir.
  
felicidade:
cinco publicações em periódico
de excelência.
  
chove no meu escritório.
a água devora os papéis
abre caminhos.
  
deixa um rastro de vida
que acompanho
contemplando o Sol
que vai nascer.
Lílian Almeida 
Foto de Ithalu Dominguez no Pexels

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Foto de Ogo no Pexels

Sobre importâncias

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar.


Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.

Manoel de Barros (Memórias inventadas. Segunda infância)

Foto de Kat Jayne no Pexels

Lua adversa

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
Cecília Meireles
Foto de Dom Le Roy no Pexels

O homem que brigou com o vento

No caso, o homem sou eu mesmo. E a culpa é fácil dizer… é do vento! Aconteceu o seguinte: desde que resolvi dar um tapa no visual da casa e instalar um forro no teto, a coisa toda ficou estranha. A casa, é verdade, ficou mais bonitinha, mas eu não fazia ideia de que, com esse simples movimento de renovação da parte de cima e interna do lar, estaria eu criando um novo mundo.

Pequenos apocalipses sobre minha cabeça. Defini primeiro assim. Depois comecei a andar com passos de detetive pelos cômodos, as mãos para trás, como imagino ser o gesto atemporal dos filósofos, perscrutando tudo que estava acima de mim e, supunha, no entrelugar da casa. Invisíveis criaturas ressuscitando o Axé no meu telhado? Invasão de um exército alienígena, cujas armas são perturbações sônicas? Castigo divino pelo meu ateísmo? A conclusão veio num sopro: eu estava aborrecido, três dias sem dormir, ou melhor, despertado em intervalos na madrugada pelas trombetas do além.

Tinha que fazer algo. Instalei a escada e subi no telhado. Tarefa complicada. Logo me vi imitando Tom Cruise na famosa cena do filme Missão Impossível. Braços estendidos me transformando na cruz de minha própria penitência. Eu fui arrumar o problema e quase que arrumo mesmo um problema. Com o peso de minha mão, o telhado estalou e uma rachadura surgiu. Recuei. Veja só a falta de efeitos especiais hollywoodianos na vida prática de uma pessoa.

Embora meu pai tenha me treinado desde a infância para dominar as técnicas de resolução de qualquer problema futuro de engenharia civil amadora (não sou um engenheiro civil formado, sou apenas cidadão), sinto que o decepcionei, pois mal consigo fixar um prego na parede sem sair com avarias no meu próprio corpo.

Para mim, era difícil aceitar que o ar atmosférico que se desloca naturalmente, seguindo determinada direção, estivesse simplesmente agindo conforme seus movimentos de existência. Cada lufada sacudia o meu juízo em busca de meios para deixar de sentir o vento forte e prolongado que produzia um universo musical distante do meu gosto.

Prosseguia combativo.

Um amigo que entende de telhados me disse: Faça isso, isso e isso. E então eu fiz isso, isso e isso. Nada. Rimara, minha companheira, mais resignada, me falava: Não brigue com o vento, amor. Não tem jeito. Vamos nos adaptar. Aquela paciência de Monja Coen me deixava mais agitado do que a própria corrente de ar que me atormentava. Tá certo, eu dizia. Mesmo sabendo que, para mim, não estava nada certo. Longe disso. Por outro lado, nosso contraste diante do problema me revelava: o mundo não tem só a forma de si mesmo, tem também um pouco da nossa forma, e esse nosso jeito de ver as coisas negocia com a forma do mundo.

Depois das inúmeras tentativas que, para mim, resultaram falhas, minha companheira me diz pela milésima vez: Melhorou, amor. Relaxe. E eu, contrariando a regra de sempre ouvi-la (ela quase sempre tem razão), ainda às voltas com possíveis resoluções definitivas contra o vento malévolo, me agarro a essa verdade, que só ela acredita: É, melhorou.

Evanilton Gonçalves (autor de Coisas que desaprendi com o tempo. Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, 08/09/2020)

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay 

A primeira vez que fui ao céu

Era embaixo do cajueiro, na fazenda do meu avô. No Cauê, interior da Bahia, onde ele ficava.

Nas férias no meio do ano, em uma tarde de sol quente, eu o vi pela primeira vez. Estava na fazenda vizinha, fiquei hipnotizada, queria um pra mim.

Na manhã seguinte, inquieta no café, movimentando as pernas embaixo da mesa, com as mãos procurando o que mexer, os olhos faiscavam de expectativa, indiferentes ao desgosto de minha avó diante dessa minha alegria.

Apesar de vozinha não gostar, a devoção de meu pedido ao meu avô foi tão forte que, com o sol já passado do meio-dia, mas ainda faltando horas para alcançar os braços da lua, ele voltava da lida, trajando sorriso de rei e trazendo nas mãos cordas e madeira.

Minha avó tentou convencê-lo: “Se essa menina se machucar, você é o culpado!”

Vejam se eu, já com oito velinhas sopradas, perto de alcançar mais uma, me machucaria?

Vovô quase cedeu a ela no primeiro momento, mas confessei minha preferência por ele e expressei que tomaria cuidado. Isso e um beijo no rosto lhe deram disposição para começar a construir meu divertimento.

Eu observava atenta, nem tão perto para não atrapalhar, nem tão longe para não me descuidar de detalhes da construção: as cordas sendo presas nos galhos do cajueiro e depois as mesmas, sustentando a madeira. Estava em guarda, como quem espera a hóstia consagrada e a primeira comunhão.

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Eu ouvia meu nome como se estivesse em transe, encantada pelo trabalho que analisava. Foi quando percebi que estava pronto para a estreia, mas precisaria esperar, pois o sol já tinha partido e as estrelas dominavam o céu. Era perfeito. Se eu pudesse, dormiria lá, de olhos bem abertos, vigilantes. Seria possível?

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Precisávamos jantar. Eu já estava com a barriga bem cheia de felicidade, mas ainda assim queria devorar a noite para que o grande dia chegasse.

Após a refeição, nos reunimos para a oração, vovô sentado na rede, vovó no tamborete, eu ajoelhada diante do crucifixo da varanda, todos iluminados pela luz do candeeiro. As preces eram sempre as mesmas… Pai Nosso, Ave Maria, Anjo da Guarda… Eu, que sempre fingia devoção, rezei nesta noite colocando pontuação em cada frase. A ausência das minhas irmãs — se elas estivessem não parariam quietas, me cutucariam, ficariam rindo baixinho, me beliscando — e o sonho de todo o dia fizeram com que eu me comportasse e agradecesse de fato nas preces dessa noite.

Quase não dormi. Acordava toda hora, espiava pela fresta da janela, mas ainda continuava escuro. O sol tardou, até que entrou devagarinho pela fenda e eu pulei da cama. Nem escovei os dentes, saí correndo para o encontro da minha nave…

— Pode ir voltando, mocinha! Escove os dentes e tome café. E cadê a benção?

— Benção, vôzinho.

— Deus lhe abençoe!

Cabisbaixa, mas com ligeireza, fui fazer o que me foi ordenado. Quando terminei, vovô me esperava no cajueiro como um guerreiro, já dando de imediato algumas orientações, de como tomar cuidado com as lagartas de fogo, não colocar os pés no chão e não aumentar a velocidade.

Sentei-me, posicionei as mãos nas cordas, vovô puxou para trás a madeira em que eu estava sentada e soltou…

Fui ganhando velocidade, ele empurrava as minhas costas.

Fechei meus olhos, sentindo o vaivém… O cajueiro soltava as folhas como se estivesse emocionado… O vento acariciava o meu rosto… Estava no céu!

Elizandra Souza (Filha do fogo: 12 contos de amor e cura, Mjiba – Comunicação, Produção e Literatura Negra, 2020)

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 1.)

Imagem de beate bachmann por Pixabay

O homem; As viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra a terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 2.)

Image by skeeze from Pixabay 

A quem confiar minha tristeza?

Li há anos um conto do escritor Anton Tchekhov que não me saiu da cabeça. Chama-se Angústia. A breve narrativa começa com o cocheiro Potapov, uma espécie de taxista em nossos tempos, coberto de neve, imóvel em seu veículo, enquanto aguarda passageiros para transportar de um lado a outro da cidade. Talvez se pudesse pensar a mesma cena friorenta aqui em terras nordestinas, se levarmos em conta a metamorfose geográfica aplicada pela pessoa que ocupa o cargo de ministro interino da Saúde de nosso País.

Em síntese, é o seguinte: Potapov sofre pela recente morte de seu filho. Em meio à tristeza, tenta desabafar sobre sua perda com as pessoas que ele transporta ou encontra pelo caminho, mas ninguém lhe dá ouvidos. Gente de diferentes classes sociais, de militar a cocheiro como ele, ignora a dor do trabalhador . Potapov segue, mesmo em evidente estado melancólico, na labuta, com o coração em pedaços. Após o insucesso nas tentativas de partilhar seu sofrimento e receber um gesto solidário, ao fim do expediente, em casa, conta finalmente a seu cavalo sobre a dolorosa perda do filho.

Em 2020, na vida real, a indiferença sobre a dor alheia parece nos envolver na mesma intensidade. Uma espécie de hierarquia da vida se faz presente, cujo valor é medido pelo que o filósofo camaronês Achille Mbembe denomina por necropolítica. No cenário pandêmico em que estamos todos inseridos, os exemplos de aversão ao luto alheio beiram a psicopatia. Como pode alguém, em sã consciência, tripudiar da dor dos outros? Afinal, o que é viver em sociedade?

O isolamento necessário para a manutenção da saúde coletiva soa como ofensa aos ouvidos de alguns cidadãos. Enquanto parte da sociedade luta em prol do bem comum, fazendo de tudo para salvar vidas de brasileiros e brasileiras, um outro tanto faz questão, por um lado, de se fantasiar com as cores nacionais, como se assim exaltassem uma incomparável brasilidade, e, por outro lado, exigem o direito à ferocidade, o direito de berrar, até mesmo para alguém de luto, como faz um personagem insensível no conto de Tchekhov: “Todos vamos morrer”.

No Brasil que não faz questão de acolher brasileiros e brasileiras num momento tão difícil, resistir é lutar contra a normalização da brutalidade. É o que fez, por exemplo, o taxista Marcio Antonio, no Rio. Ao ver uma pessoa desrespeitar a homenagem às vítimas da pandemia na praia de Copacabana, foi lá e recolocou as cruzes no lugar, exigindo respeito também pela morte do seu jovem filho, uma das vítimas da covid-19. Enquanto provocadores o adjetivavam com o intuito de o insultar, sem nenhuma empatia por sua dor, ele seguiu firme demonstrando o que todos nós precisamos, independente de vieses políticos: civilidade.

Uma chuva de indiferença contamina nosso solo. Vai passar. Outro mundo é possível. Acredito nisso. Ao mesmo tempo, na medida em que milhares de pessoas sofrem suas perdas por causa da pandemia, ao passo que o Chefe do Poder Executivo do País vive entre a negação e o eufemismo, quando não, o menosprezo à situação ou o delírio com a panaceia, penso o versículo de um canto da Igreja Russa usado como epígrafe no conto de Tchekhov ecoando na cabeça das pessoas: A quem confiar minha tristeza?

Evanilton Gonçalves (A crônica acima foi publicada no jornal A Tarde, no dia 07/07/2020.)

Imagem de Alexandra Haynak por Pixabay 

Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa

Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…

Vinicius de Moraes."