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Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem.

Havia as misérias e as grandezas. Havia o amigo e o inimigo, o leal e o traiçoeiro. Havia muito de amor e de ódio. Havia muito de riqueza na pobreza, na miséria de cada um. E havia também a miséria que transcende a própria miséria, a miséria do egoísmo, da inveja, do ódio, do desejo assassino de liquidar, de acabar com o irmão.

Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem. Do homem que não se descobriu em si próprio nem no outro. Havia a miséria que nem o amor de pessoas como Vó Rita, como Bondade e como Negro Alírio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver. Havia a miséria das pessoas que trazem o coração trancado para qualquer ato de amor. E essas pessoas acabavam atraindo para si o ódio de todos os demais. Fuinha era uma dessas pessoas.

Maria-Nova tinha muito medo de Fuinha. Sempre que passava em frente ao barraco dele apertava os passos. Uns diziam que ele era louco, outros que era maldoso, perverso, e que nada de louco tinha. Conversava, andava, falava, trabalhava normalmente. Aparecia no armazém de Seu Ladislau, tomava banho ali naqueles quartinhos em que os homens se banhavam, bebia uns goles de pinga, falava e até ria um pouco para alguns, e ia embora. Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos acordavam altas horas da noite com o grito das duas. Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas e batia até sangrar. Se elas choravam baixinho, batia até que elas gritassem e depois batia até que elas calassem.

A Fuizinha crescia temerosa, arredia. Uma vez Maria-Nova parou perto da cerca de arame farpado que havia em volta do barracão e Fuizinha ameaçou soltar alguma palavra, quase confidência de tão baixo que era. Maria-Nova escutou a voz do Fuinha e fugiu. Escutou depois um baque surdo no chão e os gritos da menina. Fuizinha crescia entre o choro e a pancadaria. Tinha o rosto todo marcado. E sua mãe era passiva e temerosa. Eles não recebiam nem faziam visitas. Bondade sempre passava por lá, demorava um pouco, mas nunca lhe permitiram ficar para dormir. Ele nunca esquecia das duas. Sempre ia lá no dia ou após o dia em que misteriosamente sumia da favela e retornava com dinheiro, alimento e balas para as crianças. Bondade era o único que as visitava. Vó Rita, antes, visitava-as também, mas depois que ela passou a viver com a Outra, nunca mais visitou ninguém.

Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a pancadaria na noite anterior. A mulher gritara, gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a voz do Fuinha:

– Agora silêncio.

A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha.

Maria-Nova tinha pavor dele. Houve quem tentasse falar com ele e Fuinha cinicamente respondeu que a filha era dele e que ele fazia com ela o que bem quisesse. No dia em que Fuizinha tentou aproximar-se de Maria-Nova, de noite, os gritos dela foram mais dilacerantes ainda.

Conceição Evaristo (Becos da memória, 3ed, Pallas, 2018)

Foto de Mateus Souza no Pexels

Somos a nossa herança

[…] eu continuei sem entender, insisti, é o problema do livre-arbítrio, gostamos de imaginar que somos livres, completamente livres, mas isso não passa de ilusão, somos a nossa herança, uma herança gravada nas palavras de nossos ancestrais, pensemos num bicho qualquer, disse a avó, disse a capivara, um tamanduá, por exemplo, um tamanduá é um tamanduá e continuará sendo um tamanduá, assim como seus filhos e seus netos e seus bisnetos e tataranetos, numa cadeia infinita de tamanduás, e não há nada a fazer, a não ser que, por algum motivo, quase sempre mero acaso, o tamanduá consiga reconhecer a narrativa que faz dele um tamanduá, decifrá-la, e reencontrar a antiga conexão, ou seja, fazer a travessia, que é o momento em que ele pode se aproximar de sua essência original, que é irrecuperável, pois não é feita de palavras, se desvincular de sua herança de tamanduá e assumir a forma de outro bicho, de uma planta, de uma pessoa, e até mesmo, preste atenção, de outro tamanduá! a capivara fez uma pausa, mexeu a orelha esquerda e disse, bom, chega de jogar conversa fora, e estamos indo muito devagar, temos de chegar antes de anoitecer, suba, eu subi novamente em seu dorso e seguimos em frente, a capivara acelerando cada vez mais, só mais uma pergunta, o quê?, isso que você disse, do tamanduá ser um tamanduá, o que isso tem a ver com a minha neta? a capivara deu um longo suspiro, tudo, e talvez nada, talvez ela consiga fazer a travessia, talvez não, talvez a filha da sua fiha, ou quem sabe, a filha da filha da sua filha, é difícil prever, de qualquer forma, seja como for, já aconteceu, tudo é passado, fora isso não há nada, eu fiquei sem saber o que dizer, fiz o resto da viagem em silêncio […]

Carola Saavedra (fragmento de Com armas sonolentas, Companhia das Letras, 2018)

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Imagem de Free-Photos por Pixabay

Diário da alma humana

A experiência do confronto que se alastrava pelo país interessava a De Rienzi não apenas por sua visão marxista da sociedade, mas também porque lhe oferecia elementos de análise para melhor compreender os mecanismos psicológicos do homem diante da violência. Pressionados pelas tensões derivadas da repressão militar, alguns militantes da esquerda, conhecedores das convicções ideológicas do psiquiatra, para, ao menos, obter pela análise a catarse do medo. Não era fácil para rapazes em muitos casos ainda adolescentes enfrentar a virulência da repressão e se tornarem eles próprios violentos, levados pelo idealismo da resistência. Ativistas políticos, não viam outra saída para o impasse em que o país mergulhara senão radicalizando o enfrentamento por meio da luta armada, heroicos mas inexperientes.

A guerra era uma anomalia social tão poderosa, que chegava a neutralizar o medo essencial do homem, que é o medo da morte. De Rienzi estudava há tempos esse fenômeno, convencido de que só através do socialismo a sociedade criaria condições de convivência decente. Ele não tinha interesse algum em colocar em livro suas reflexões sobre o assunto, que seus conhecimentos não cobririam, mas apenas em tentar entender as reações psíquicas dos homens postos diante de situações extremas, que estimulavam a irracionalidade instintiva até suas últimas consequências.

Pelo depoimento de algumas vítimas, De Rienzi se preocupava especialmente com a questão da crueldade intrínseca da tortura. Que impulsos poderiam levar um homem aparentemente normal, educado para relações civilizadas sob a égide de uma religião e de uma moral, a se transformar num torturador, capaz das mais absurdas perversões para arrancar confissões sempre duvidosas, pelos meios empregados para obtê-las? Que limites haveria entre a presumível convicção de um dever a cumprir ou a simples irrupção dos primitivos impulsos da natureza humana, incapaz de bloquear sua feroz animalidade congênita?

Pelas histórias que registrara, narradas inclusive pelos padres da Igreja progressista que repudiavam o regime, De Rienzi pudera organizar um pequeno dossiê pessoal sobre os métodos de tortura. Para ele, tinha ficado claro que, através da disseminação dessas práticas, o espírito do nazismo era uma realidade na vida dos povos, para além do rótulo do regime que se impusera na trajetória política da Alemanha. Nas guerras ou na paz, o pathos nazista do ódio sempre estivera presente nas relações entre os homens, individuais ou coletivas, entre pessoas ou nações, não se limitando à fase histórica de exacerbação do sentimento nacionalista de um país dominado por uma liderança fanática, revanchista e inescrupulosa, que institucionalizou a crueldade do Estado.

De Rienzi, na etapa mais aguda da repressão, recebeu para análise ex-prisioneiros portadores de sequelas psicológicas e morais decorrentes das torturas, notadamente rapazes entre 18 e 25 anos de idade, pois era grande o número de jovens entre os militantes da luta armada, integrantes dos vários grupos de resistência espalhados pelo país. Pôde, assim, elaborar um registro pessoal dos relatos que mais o impressionaram. Os torturadores não se limitavam a afligir a vítima com seus monstruosos métodos e instrumentos. Não era incomum que as transformassem em cobaias, durante sessões que representavam verdadeiras aulas para novas turmas de agentes da repressão. O aprendizado se fazia por meio da exibição de filmes e “slides” sobre as sevícias, seguidas de ensinamentos práticos no corpo de prisioneiros.

Tal como ocorrera nas prisões dos castelos da Idade Média e nos calabouços da Santa Inquisição a serviço das verdades da Igreja, as sessões podiam ser individuais ou coletivas, com o objetivo único de arrancar as confissões e eliminar resistências.

Em qualquer dos casos, o sofrimento era incomensurável. Só, diante dos seus algozes, no interior de um cubículo propositadamente sombrio, desejoso de uma misericórdia inalcançável, o prisioneiro ia sofrendo o esfacelamento de sua personalidade. Os mais corajosos provocavam a fúria dos torturadores, num processo implacável e continuado, que transformava a brutalidade profissional num ódio pessoal incontrolável, mais feroz à proporção que a resistência às confissões aumentava.

[…]

João Carlos Teixeira Gomes (In: Assassinos da liberdade. Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2008)

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Vitória nossa de cada dia

– E então você não quis mais nada disso.  E parou com a possibilidade de dor, o que nunca se faz impunemente. Apenas parou e nada encontrou além disso. Eu não digo que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta. Não esta sua voz baixa e doce. E eu não choro, se for preciso um dia eu grito, Lóri. Estou em plena luta e muito mais perto do que se chama de pobre vitória humana do que você, mas é vitória. Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar. Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. Mas eu escapei disso, Lóri, escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você também estar pronta.

Clarice Lispector (fragmento de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Rocco, 1998)

Choro de mulher

Joaquim Pedro ouve choro de mulher. Por que não dizer simplesmente choro? Porque o de mulher é longo, mina de nascentes insuspeitadas, por ela própria desconhecidas. Brota de dentro, de camadas que ela sem saber encobriu durante a vida. É lancinante e calmo, freme e escorre, estanca e se precipita, ora sincopado, ora suave. O choro de Marbela era um rio a correr. Quando, afinal, chegaria ao estuário, em fundo abraço de lágrimas, até que se completasse a mistura, até o apaziguamento? De onde estava, a avivar para a noite a brasa do charuto, Joaquim Pedro seguia sem querer o curso daquele  choro, era como se o visse escorrer em filetes por ente pedras, ou engrossar nos declives; quando parado, em súbita represa de água escurecida, Joaquim Pedro pensava: “Acabou”. No entanto, do fundo subia uma indistinta corrente que o fazia transbordar e prosseguir; Marbela retomava o choro, a princípio enfraquecido, gemidos de um ferido animal agonizante, em seguida entrecortado.

Há homens que choram. Em geral os demais homens os desprezam. Admite-se no macho o grito, jamais a súplica. Homem chora por dentro nos seus veios subterrâneos. Nas mulheres o trânsito da dor é mais fácil, elas desabafam e esquecem.  Esquecem? Por ventura alguém esquece? Há feridas abertas, para sempre abertas, e delas pinga sangue.

Com o charuto a queimar além da metade, Joaquim Pedro ouve o pranto de Marbela rumorejar, debilitado qual água em beira de riacho. Pronto. Agora, o rosto ainda a queimar, mas sob o efeito balsâmico de pomadas, Marbela ficará deitada uma ou duas horas, de olhos abertos na escuridão, de alma engessada, de peito sem ressonâncias, vazia, esvaziada. Adormecerá de madrugada, e não será por culpa do canto rouco dos galos e das asas que eles tatalam nos poleiros.

Hélio Pólvora (Don Solidon,  Casarão do verbo, 2011)

O gosto simples da vida

No banheiro social há toalhas limpas. Azuis como os azulejos da parede. E há sabonetes de glicerina, como antigamente. Tudo perfeitamente igual. A água morna do chuveiro me reconforta. Banho-me demoradamente. Pudera lavar-me dos anos todos da minha existência e me enxugar purificada. Fênix. Recém-parida de uma origem outra, da qual despontasse ungida, identificada, semelhante e comungante com todos, para a plenitude do gozo simples da vida. O gozo simples da vida, esse só é concedido aos iguais. Toda a complexidade da existência não vem senão das diversidades que os diferentes entre si procuram impor-se, reciprocamente. Viver é simples. Os viventes complicam esse viver na invasão iconoclasta, tentando desmoronar, com as suas verdades, as sagradas verdades de outrem. E se esboroa o gosto simples pela vida. E é bastante olhar os rostos. Há sempre uma denúncia de amargura no mais disfarçado dos sorrisos. Mas sempre se prosseguirá sacrificando o gosto simples da vida, na arrogância pretensiosa de colocar verdades próprias em posição de definição acima das demais.

Não quero descer para o jantar, mas temo ser mal interpretada. Não há capricho ou rancor. O tempo é semelhante a um tornado, acaba arrebatando tudo. Há só o desejo de fugir ao convívio deles. Talvez receiem ser contaminados pelo vírus da minha liberdade.

Gláucia Lemos (fragmento de Marce, Solisluna Editora, 2013)

Sobre o silêncio

         O Surdo não precisava tapar os seus; já os tinha obstruídos. Desconfiava, no entanto, que as máximas da finada Idelfonsa, de tanto lhe martelarem os ouvidos, e de lhe provocar irritação, acentuaram-lhe a surdez. Ele resistia a ouvi-la, de maneira quase inconsciente, e habituou-se a fechar os ouvidos também para os outros. E assim tecia uma teia cada vez maior de silêncios, em que vigiava e laborava e atentava, disfarçado a um canto, fingindo-se de aranha morta. Quem quiser que lhe caísse na teia. Bastava-lhe engolir um inseto de cada vez e recolher-se sobre si mesmo. O Surdo amadurecia nos silêncios. De meditação em meditação sentia-se crescer por dentro. Os outros não reparavam, porque presos às exterioridades do seu próprio ser, cujo valor superfaturavam. Há silêncios que falam por uma assembleia inteira, como também há silêncios inertes. É preciso saber ouvi-los, mesmo quando se tem ouvidos moucos, e neles distinguir vozes, ecos, ressonâncias, sussurros – os interlocutores de maior valia, porque não tendo como falar, entendem-se à sua maneira altamente discreta com quem os sabe acolher. O Surdo os amava, os defendia, saindo dos seus silêncios quando estes, por demais densos, por demais audíveis, conseguiam ferir-lhe os tímpanos emudecidos, expondo-o, então, ao vozerio atordoante do mundo.

 

Hélio Pólvora (fragmento de Inúteis luas obscenas, Casarão do verbo, 2010)

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Desonra

Achou que ia acabar se acostumando. Mas não é isso que acontece. Quanto mais mortes ajuda, mas nervoso fica. Numa noite de domingo, ao voltar para casa dirigindo a Kombi de Lucy, chega a ter de parar no acostamento para se recuperar. As lágrimas lhe correm pelo rosto sem que possa controlar, as mãos tremem.

Não entende o que está lhe acontecendo. Até agora havia sido mais ou menos indiferente a animais. Embora reprove abstratamente a crueldade, é incapaz de dizer se é cruel ou bondoso por natureza. Simplesmente não é nada. Sempre achou que as pessoas cujo trabalho exige a crueldade, pessoas que trabalham em matadouro, por exemplo, desenvolvem uma carapaça em volta da alma. O hábito endurece: deve ser assim na maioria dos casos, mas não parece ser assim no seu caso. Parece não ter o dom do endurecimento.

Todo o seu ser fica tomado pelo que acontece naquela arena. Está convencido de que os cachorros sabem que chegou a sua hora. Apesar do silêncio e do procedimento indolor, apesar dos bons pensamentos que Bev Shaw fica pensando e que ele tenta pensar, apesar dos sacos hermeticamente fechados em que colocam os corpos, os cachorros do quintal farejam o que acontece lá dentro. Baixam os olhos, enfiam o rabo entre as pernas, como se também eles sentissem a desgraça que é morrer; travam as pernas e têm de ser empurrados, puxados ou carregados para a porta. Na mesa, alguns se debatem furiosamente de um lado para o outro, outros soltam ganidos melancólicos; nenhum olha para a agulha na mão de Bev, que de alguma forma sabem que vai lhes fazer um mal terrível.

O pior são aqueles que farejam e tentam lamber sua mão. Não gostou nunca de ser lambido, e seu primeiro impulso é tirar a mão. Por que fingir ser camarada, quando na verdade se é assassino? Mas ele acaba cedendo. Por que a criatura que está sob a sombra da morte teria de sentir que ele recua como se o seu contato fosse repulsivo? Então deixa que o lambam, se quiserem, assim como Bev Shaw os acaricia e beija se eles deixam.

Espera não se descobrir um sentimental. Tenta não sentimentalizar os animais que mata, ou sentimentalizar Bev Shaw. Evita dizer para ela “Não sei como consegue fazer isso”, para não ter de ouvir a resposta, “Alguém tem de fazer”. Não descarta inteiramente a possibilidade de, em um nível mais profundo, Bev Shaw não ser um anjo libertador, mas um diabo, de por baixo das mostras de compaixão ela esconder um coração mais duro que o de um açougueiro. Ele tenta manter a cabeça aberta.

Como é Bev Shaw quem se encarrega de enfiar a agulha, ele é o que se encarrega de desfazer os restos. Nas manhãs seguintes à sessão de sacrifícios, dirige a Kombi carregada até o incinerador do Hospital Settlers, e ali entrega às chamas os corpos dentro dos sacos pretos.

Seria mais simples colocar os sacos no carrinho do incinerador logo depois da sessão e deixa-los ali para o pessoal da incineração cuidar deles. Mas isso significaria deixa-los no depósito junto com o lixo do fim de semana: restos das alas do hospital, carniça coletada na beira da estrada, refugos malcheirosos do curtume – uma mistura ao mesmo tempo fortuita e terrível. Ele não tem coragem de impor essa desonra aos cachorros.

Por isso, nas noites de domingo leva os sacos para a fazenda na parte de trás da kombi de Lucy, passam a noite ali e na segunda feira de manhã vão para o hospital. Lá, ele próprio os descarrega, um de cada vez, para o carrinho de transporte, liga o mecanismo que leva o carrinho através da porta de aço para as chamas, puxa a alavanca para esvaziar o conteúdo e desliga de volta, enquanto os funcionários cuja função é fazer exatamente isso ficam olhando.

Na primeira segunda feira deixou que eles fizessem a incineração. O rigor mortis havia endurecido os corpos durante a noite. As pernas mortas ficavam presas nas barras do carrinho e, quando o carrinho voltava da fornalha quase sempre um cachorro voltava também, enegrecido e com dentes à mostra, cheirando a pelo queimado, a cobertura de plástico incinerada. Depois de algum tempo, os funcionários começaram a bater nos sacos com o cabo das pás antes de carregá-los, para quebrar os membros rígidos. Foi quando ele interveio e passou a fazer ele mesmo o trabalho.

O incinerados é alimentado a antracito, com um ventilador elétrico que suga ar pelos tubos; ele acha que deve ser dos aos anos 1950, quando o hospital foi construído. Opera seis dias por semana, de segunda a sábado. No sétimo dia, descansa. Quando o pessoal chega para trabalhar, a primeira coisa que faz é remover as cinzas do dia anterior, antes de carregar a fornalha. Por volta das nove da manhã a temperatura da câmara interna é de mil graus centígrados, quente o bastante para calcificar ossos. O fogo é alimentado até o meio dia da manhã; leva toda a tarde para esfriar.

Ele não sabe o nome do pessoal e tampouco sabem o dele. Para eles é simplesmente o sujeito que começou a vir às segundas feiras com os sacos da Bem-estar do Animais e que chega cada vez mais cedo. Chega, faz seu trabalho, vai embora; não faz parte da sociedade que, apesar da cerca de arame farpado, do portão com cadeado e do aviso em três línguas, tem como centro o incinerador.

Pois a cerca há muito foi cortada; o portão e a placa de aviso simplesmente são ignorados. Quando os funcionários chegam de manhã com os primeiros sacos de lixo dos hospital, um grupo de mulheres e crianças já está esperando para catar seringas, alfinetes, bandagens laváveis, qualquer coisa que dê para fazer dinheiro, mas principalmente comprimidos, que vendem nas lojas muti, de negros, ou nas ruas. Há também os vagabundos que passam o dia nos arredores do hospital e de noite dormem encostado na parede do incinerador, ou até mesmo dentro do túnel, por causa do calor.

Não é uma sociedade a que pense juntar-se. Mas quando está ali, eles também estão; e se o que ele traz não lhes interessa é porque os pedaços de um cachorro morto não servem nem para vender, nem para comer.

Por que assumiu esse trabalho? Para aliviar a carga de Bev Shaw? Para isso bastava descarregar os sacos no depósito e ir embora. Por causa dos cachorros? Mas os cachorros estão mortos; e o que sabem os cachorros acerca de honra e desonra?

Por ele mesmo, então. Por sua visão de mundo, por um mundo em que homens não usam pás para reduzir corpos a uma forma mais conveniente de eliminar.

 

J.M. Coetzee (fragmento do romance Desonra, Companhia das letras, 2000)

 

Pedro Páramo – o céu

Lá fora o tempo deve estar variando. Minha mãe dizia que, quando começava a chover, tudo se enchia de luzes e do cheiro verde dos brotos. Contava-me como chegava a maré das nuvens, como se lançavam sobre a terra e a descompunham, mudando-lhe as cores… Minha mãe, que viveu sua infância e os seus melhores anos neste povoado e que nem sequer pode vir morrer aqui. Até para isso me mandou em seu lugar. É curioso, Dorotea, como não consegui ver as nuvens. Pelo menos, devem ser estas mesmas que ela conheceu.

– Não sei, Juan Preciado. Fazia tantos anos que não levantava a cabeça que me esqueci do céu. E se o tivesse feito, o que teria ganho com isso? O céu alto e meus olhos tão sem visão que vivia satisfeita de saber onde ficava a terra. Além disso, perdi todo o interesse, desde que o padre Renteira me assegurou que eu não ia conhecer a glória nunca. Que nem sequer de longe a veria… Coisa dos meus pecados; mas ele não devia ter me dito. Por si mesmo a vida já é trabalhosa. A única coisa que faz a gente mover os pés é a esperança que ao morrer levem a gente de um lugar para outro; mas quando fecham uma porta pra gente e a que fica aberta é só a do inferno, seria melhor não ter nascido… Para mim, Juan Preciado, o céu está aqui onde eu estou agora.

 

Juan Rulfo (Pedro Páramo, Paz e Terra, 1996)

… tornar-se um ser humano

De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.

A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.

Clarice Lispector. In: Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, Rocco, 1998.