Lua adversa

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
Cecília Meireles
Foto de Dom Le Roy no Pexels

De zero a dez

Há dias eu pensava sobre a intensidade da dor, como mensurá-la e expressá-la para quem não a sente. Era um exercício de autopercepção e de expressão. Isso me instigava no desafio de traduzir em palavra o que sentia e levar ao outro o que foi sentido. Ofício de quem escreve, não é? Pois, me parecia um bom exercício, esse, de traduzir a intensidade da dor.

O primeiro disparo veio na pergunta “qual a intensidade da dor?”. Eu fiquei sem saber responder, falei que era forte e a medida foi sugerida. “De zero a 10, quanto?” Ainda me detive uns minutos para responder um três, àquele momento. Passaram dias desse diálogo entre paciente e osteopata. E eu fiquei com o de zero a dez na cabeça. O que era pra mim uma dor na intensidade 10? Suportaria mais do que a intensidade que qualifiquei de cinco? Eu não sabia. Sabia apenas que doía e que não era bom sentir o desconforto físico que me visitava fazia tempo.

Foto de Evelyn Chong no Pexels

Não me apraz esse tipo de visita, gera incômodos. Como gosto de ler as coisas, inclusive os sinais do meu corpo, me questionei por anos sobre o motivo da volta indesejada da dor. Caminhos vários percorri, entendi somatizações, padrões, comportamentos vários que eram porta aberta para a companhia dolorosa. Todos foram importantes, reconheço. E se ainda não curei de vez a dor, curei vários mecanismos de atuação na vida que geram desconforto físico ou, se não, tomei consciência de muita coisa em mim que a atraía.

Em várias portas bati, desde tratamento espiritual a ortopedista, cada um trouxe sua cota de contribuição, mas ela continuava dando as caras vez em quando. Resolvi que iria por um caminho novo pra mim, afeita que sou à possibilidade de ter uma perspectiva diferente sobre o já dito. Ia procurar um osteopata para um diagnóstico e tratamento, era uma das minhas metas para 2020. A pandemia chegou, ilhou todo mundo em casa e vi meu propósito de autocuidado escorrer pelos meses. O tempo ia passando, eu via o plano ficar distante. Até que um dia, numa conversa com uma amiga, surgiu o osteopata. Estava dado o sinal, a abertura para a possibilidade de implementar o cuidado. A essa altura o confinamento começava a ser flexibilizado. Deixei passar uns dias, amadurecendo a possibilidade, e marquei a consulta.

Foi lá, no primeiro atendimento, que fui confrontada com o desafio de traduzir a intensidade da dor, com uma régua de zero a dez. O tratamento ia avançando, o desconforto reduzindo e a pergunta volta e meia me rondava. “De zero a dez, quanto?” O que era uma dor nota 10? Com anos de convivência, tornei-me resiliente e resistente à dor. Suportava-a tentando diálogo, mesmo quando ia às lágrimas. Confesso que não sei se as lágrimas eram de dor ou de impotência, outro tipo de dor, que dói além físico.

Nas sessões de tratamento osteopático minha maior intensidade expressada era o cinco. E já era muito pra mim. Sempre, depois da resposta, me perguntava em silêncio. O que é uma dor dez? Aguentaria eu mais do que já estou aguentando? Quanto mais precisa doer pra chegar a 9 ou 10? Já não é o bastante para caber nessa quantificação? Estou superestimando minha capacidade de resistir à dor? Subestimando a intensidade do doer?

Os dias foram passando e a visita, que pensei ter ido embora definitivamente, voltou com disposição. Senti bastante dor, tive alguns movimentos comprometidos e também a possibilidade de receber cuidado profissional num curto espaço de tempo. “Dói?” “Dói”. “Quanto?” “Muito.” “De zero a dez, quanto?” “Cinco, seis… o que é uma dor nota dez?” Não tive resposta. Doía muito e era o bastante. Cinco era igual a dez na matemática dolorida do meu corpo. Finalmente consegui resolver o impasse.

Lílian Almeida

O homem que brigou com o vento

No caso, o homem sou eu mesmo. E a culpa é fácil dizer… é do vento! Aconteceu o seguinte: desde que resolvi dar um tapa no visual da casa e instalar um forro no teto, a coisa toda ficou estranha. A casa, é verdade, ficou mais bonitinha, mas eu não fazia ideia de que, com esse simples movimento de renovação da parte de cima e interna do lar, estaria eu criando um novo mundo.

Pequenos apocalipses sobre minha cabeça. Defini primeiro assim. Depois comecei a andar com passos de detetive pelos cômodos, as mãos para trás, como imagino ser o gesto atemporal dos filósofos, perscrutando tudo que estava acima de mim e, supunha, no entrelugar da casa. Invisíveis criaturas ressuscitando o Axé no meu telhado? Invasão de um exército alienígena, cujas armas são perturbações sônicas? Castigo divino pelo meu ateísmo? A conclusão veio num sopro: eu estava aborrecido, três dias sem dormir, ou melhor, despertado em intervalos na madrugada pelas trombetas do além.

Tinha que fazer algo. Instalei a escada e subi no telhado. Tarefa complicada. Logo me vi imitando Tom Cruise na famosa cena do filme Missão Impossível. Braços estendidos me transformando na cruz de minha própria penitência. Eu fui arrumar o problema e quase que arrumo mesmo um problema. Com o peso de minha mão, o telhado estalou e uma rachadura surgiu. Recuei. Veja só a falta de efeitos especiais hollywoodianos na vida prática de uma pessoa.

Embora meu pai tenha me treinado desde a infância para dominar as técnicas de resolução de qualquer problema futuro de engenharia civil amadora (não sou um engenheiro civil formado, sou apenas cidadão), sinto que o decepcionei, pois mal consigo fixar um prego na parede sem sair com avarias no meu próprio corpo.

Para mim, era difícil aceitar que o ar atmosférico que se desloca naturalmente, seguindo determinada direção, estivesse simplesmente agindo conforme seus movimentos de existência. Cada lufada sacudia o meu juízo em busca de meios para deixar de sentir o vento forte e prolongado que produzia um universo musical distante do meu gosto.

Prosseguia combativo.

Um amigo que entende de telhados me disse: Faça isso, isso e isso. E então eu fiz isso, isso e isso. Nada. Rimara, minha companheira, mais resignada, me falava: Não brigue com o vento, amor. Não tem jeito. Vamos nos adaptar. Aquela paciência de Monja Coen me deixava mais agitado do que a própria corrente de ar que me atormentava. Tá certo, eu dizia. Mesmo sabendo que, para mim, não estava nada certo. Longe disso. Por outro lado, nosso contraste diante do problema me revelava: o mundo não tem só a forma de si mesmo, tem também um pouco da nossa forma, e esse nosso jeito de ver as coisas negocia com a forma do mundo.

Depois das inúmeras tentativas que, para mim, resultaram falhas, minha companheira me diz pela milésima vez: Melhorou, amor. Relaxe. E eu, contrariando a regra de sempre ouvi-la (ela quase sempre tem razão), ainda às voltas com possíveis resoluções definitivas contra o vento malévolo, me agarro a essa verdade, que só ela acredita: É, melhorou.

Evanilton Gonçalves (autor de Coisas que desaprendi com o tempo. Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, 08/09/2020)

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay 

A primeira vez que fui ao céu

Era embaixo do cajueiro, na fazenda do meu avô. No Cauê, interior da Bahia, onde ele ficava.

Nas férias no meio do ano, em uma tarde de sol quente, eu o vi pela primeira vez. Estava na fazenda vizinha, fiquei hipnotizada, queria um pra mim.

Na manhã seguinte, inquieta no café, movimentando as pernas embaixo da mesa, com as mãos procurando o que mexer, os olhos faiscavam de expectativa, indiferentes ao desgosto de minha avó diante dessa minha alegria.

Apesar de vozinha não gostar, a devoção de meu pedido ao meu avô foi tão forte que, com o sol já passado do meio-dia, mas ainda faltando horas para alcançar os braços da lua, ele voltava da lida, trajando sorriso de rei e trazendo nas mãos cordas e madeira.

Minha avó tentou convencê-lo: “Se essa menina se machucar, você é o culpado!”

Vejam se eu, já com oito velinhas sopradas, perto de alcançar mais uma, me machucaria?

Vovô quase cedeu a ela no primeiro momento, mas confessei minha preferência por ele e expressei que tomaria cuidado. Isso e um beijo no rosto lhe deram disposição para começar a construir meu divertimento.

Eu observava atenta, nem tão perto para não atrapalhar, nem tão longe para não me descuidar de detalhes da construção: as cordas sendo presas nos galhos do cajueiro e depois as mesmas, sustentando a madeira. Estava em guarda, como quem espera a hóstia consagrada e a primeira comunhão.

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Eu ouvia meu nome como se estivesse em transe, encantada pelo trabalho que analisava. Foi quando percebi que estava pronto para a estreia, mas precisaria esperar, pois o sol já tinha partido e as estrelas dominavam o céu. Era perfeito. Se eu pudesse, dormiria lá, de olhos bem abertos, vigilantes. Seria possível?

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Precisávamos jantar. Eu já estava com a barriga bem cheia de felicidade, mas ainda assim queria devorar a noite para que o grande dia chegasse.

Após a refeição, nos reunimos para a oração, vovô sentado na rede, vovó no tamborete, eu ajoelhada diante do crucifixo da varanda, todos iluminados pela luz do candeeiro. As preces eram sempre as mesmas… Pai Nosso, Ave Maria, Anjo da Guarda… Eu, que sempre fingia devoção, rezei nesta noite colocando pontuação em cada frase. A ausência das minhas irmãs — se elas estivessem não parariam quietas, me cutucariam, ficariam rindo baixinho, me beliscando — e o sonho de todo o dia fizeram com que eu me comportasse e agradecesse de fato nas preces dessa noite.

Quase não dormi. Acordava toda hora, espiava pela fresta da janela, mas ainda continuava escuro. O sol tardou, até que entrou devagarinho pela fenda e eu pulei da cama. Nem escovei os dentes, saí correndo para o encontro da minha nave…

— Pode ir voltando, mocinha! Escove os dentes e tome café. E cadê a benção?

— Benção, vôzinho.

— Deus lhe abençoe!

Cabisbaixa, mas com ligeireza, fui fazer o que me foi ordenado. Quando terminei, vovô me esperava no cajueiro como um guerreiro, já dando de imediato algumas orientações, de como tomar cuidado com as lagartas de fogo, não colocar os pés no chão e não aumentar a velocidade.

Sentei-me, posicionei as mãos nas cordas, vovô puxou para trás a madeira em que eu estava sentada e soltou…

Fui ganhando velocidade, ele empurrava as minhas costas.

Fechei meus olhos, sentindo o vaivém… O cajueiro soltava as folhas como se estivesse emocionado… O vento acariciava o meu rosto… Estava no céu!

Elizandra Souza (Filha do fogo: 12 contos de amor e cura, Mjiba – Comunicação, Produção e Literatura Negra, 2020)

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 1.)

Imagem de beate bachmann por Pixabay

Quem souber

Quando tudo que você tiver
For um coração cansado e só
Quando a voz do vento lhe disser
Toda estrada tem poeira e pó
Quando tudo que você puder for chorar
Sem saber como se despedir
De passados tão bonitos que precisam ficar
Pois o tempo nos exige seguir

Quando o fio lhe couber nas mãos
E calar for o que convier
Quando não mais importa ter razão
E a verdade é só de quem souber…

Persista na semente que ainda não floriu
Não deixe de amar só porque ninguém viu
Revenrencie a tudo que te machucou
Verás que a luz do dia sempre te abraçou

Quando tudo que você tiver
For um coração cansado e só
Quando a voz do vento lhe disser
Toda estrada tem poeira e pó
Quando tudo que você puder for chorar
Sem saber como se despedir
De passados tão bonitos que precisam ficar
Pois o tempo nos exige seguir

Quando o fio lhe couber nas mãos
E calar for o que convier
Quando não mais importa ter razão
E a verdade é só de quem souber…

Persista na semente que ainda não floriu
Não deixe de amar só porque ninguém viu
Revenrencie a tudo que te machucou
Verás que a luz do dia sempre te esperou…

Lará lará lará lará lará
Lará lará lará lará lá
Lará lará lará lará lará
Lará lará lará lará lá

Flávia Wenceslau

Imagem de Selling of my photos with StockAgencies is not permitted por Pixabay

O lobo mau

Eu vi o lobo mau.
Foi? Quando?
De noite.
De noite? Na floresta?
Não, em meu quarto.
Puxa! E aí?
Ele estava conversando com Chapeuzinho e depois saiu na carreira.
Foi pra casa da Vovozinha.
É.
E então? O que é que você fez?
Eu também fui.
Foi? E quando chegou lá?
O lobo disse: Abra a porta, sua Vovó!
E ela abriu.
Não. Não abro, não abro. Pois eu vou soprar. E derrubou a casa da Vovó.
Foi?
E comeu a Vovó.
Inteirinha?
É. Só tirou o vestido dela, pra não engasgar.
Ahn! E Chapeuzinho?
Chapeuzinho ficou se balançando na rede.
Na rede?
Na varanda.
Na varanda da casa? Mas o lobo não havia derrubado a casa com um sopro?
Foi.
E pode isso?
Ah, pai, você não entende nada. As pessoas grandes acreditam em tudo!

Antonio Brasileiro (“O menino no guarda-roupa”)

Imagem de 
Mauro Borghesi do 
Pixabay 

Estátua!

Às vezes me sinto um solitário à espreita, tentando capturar o exato momento em que tudo seja mais simples. Agora mesmo penso na época em que alguém colocava uma música animada enquanto eu e minha turma dançávamos como se não houvesse amanhã até que havia a pausa e tínhamos que congelar ao comando de: ESTÁTUA! Não lembro de sair vencedor nessas brincadeiras. Pouco importa. A linha do tempo me diz que o essencial é a alegria compartilhada, o riso solto, a felicidade de estar no mundo com pessoas felizes ao redor.

Quando nos encarávamos naquela simulação de imobilidade total, éramos pequenas figuras de carne e osso, com uma historinha iniciada e o anseio de fazer os outros olharem para nós com atenção sem igual. A música tocava outra vez e então outra vez nos movíamos com alegria no mundo. Sinto falta daquele sorriso fácil. Cresci um tanto indiferente às figuras esculpidas em mármore ou fundidas em metal que servem, eu sabia apenas, como banheiros para as aves que socializam nas praças.

Acontece que fui aprendendo, pouco a pouco, sobre o fato de, muitas vezes, a História oficial ser a narrativa dos vencedores, que pode ser entendida por vitória de mercenários, escravocratas, genocidas, carrascos, assassinos, sequestradores, torturadores e toda uma leva de gente má, fantasiada de cidadão de bem, que pisou na terra para espalhar dor e fazer uma criminosa fortuna com a exploração alheia. Não há virtude na exploração. Mas essas pessoas estão aí, soltas pela cidade, em seus pontos fixos de existência macabra. Só falta inventarem uma agência de turismo que guie as pessoas por esses lugares onde os meliantes históricos habitam:

— Bem, pessoal. Esse aqui é mais um que construiu uma reputação positiva pra si e contou com ajuda de cúmplices pra esconder suas falcatruas. Sim, sim, no fim da vida, esse também fez vultuosas doações pra caridade, o que, como já sabemos, lhe garantiu estadia aqui e, supostamente, uma outra no condomínio celestial tão disputado.

Ao olhar com mais atenção a materialização da cidade onde meu corpo habita, é assustador ver as homenagens que a História oficial me oferece. A cada esquina, um desvario petrificado me expõe ao terror de sua existência. Enquanto, cada vez mais, pessoas se unem contra o racismo estrutural, em prol do bem-estar coletivo, tem quem fique inconformado com a possibilidade de remoção e realocação museológica de certas estátuas e ache injusto deixar de prestar homenagem a pessoas cuja grandeza foi nos legar um rastro de sangue e sofrimento.

Como explicou o professor, jurista e filósofo Silvio Almeida em participação memorável no programa Roda Viva: “Se você tem um monumento dentro da cidade, é uma indicação de quem você quer que esteja ali, a quem você faz reverência naquele espaço”. Não é estranho que bandidos históricos tenham lugar de honra em nossa cidade? Se olharmos com atenção certos nomes de ruas ou as instalações de figuras tridimensionais expostas em terras brasileiras, o susto é garantido, o constrangimento também deveria ser.

Evanilton Gonçalves é autor de Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S). A crônica acima foi publicada no Jornal A Tarde do dia 09/09/2020.

Imagem de Wildschuetz por Pixabay 

Triste, louca ou má

Triste, louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo, rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra
Fêmea, alvo de caça
Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

E um homem não me define
Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós 
Vai viver só
Composição:Vivien Carelli
(Francisco, el hombre)
Vídeo oficial

O homem; As viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra a terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

Carlos Drummond de Andrade (Nova reunião: 23 livros de poesia, Best Bolso, 2009, vol 2.)

Image by skeeze from Pixabay