No chão de pedras estava o sublime

Estava ali, sentado. Ao lado, um enorme saco plástico preto amarrado. Preenchido. Ele ou saco? Estava ali, no chão do largo de acesso ao metrô, sentado. Tinha a atenção voltada para dentro de uma banca de adesivos, cartões postais e outros artigos. O insólito fazia-se às sete horas da noite à saída da Estação da Carioca. Sentado no chão de pedras ele olhava para dentro da banca. A distância alimentava-me o não saber o que era alvo da atenção. A calça rota, a camisa suja dos dias. O homem maltrapilho e seu saco preto, estacionados em frente à banca de adesivos, voltados para a música que a TV revelava.

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“É necessário o coração em chamas para manter os sonhos aquecidos. Acenda fogueiras”. Aquele verso rebatia nos meus ouvidos enquanto o poeta contava sobre Seu Firmino:

– É verdade que o teatro vem aqui, Sergio?
– É verdade, Seu Firmino.
– Teatro teatro mesmo?
– É, teatro mesmo.
(…)
– É, Sergio, agora já posso morrer, já sei o que é o teatro.

Saltava dos olhos de Sergio Vaz uma esperança doída, escapolia da boca palavras punhais que feriam a carne dos que sofrem e sabem. A ferida é libertação. A ferida aberta é arte. Um golpe no estômago, um soco na cegueira de ver e não enxergar, na surdez de ouvir e não escutar, na imobilidade de saber e não agir.

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O homem sentado no largo da Estação da Carioca era um Seu Firmino. Eu ouvia Charles Aznavour presentificar-se na voz de Daniel Boaventura. A música ecoava no calor da noite e tocava quem tivesse ouvidos. Aquele homem tinha ouvidos e todos os sentidos. Ele era a orquestra, a melodia, a letra. Ele era música em êxtase de ouvidos e olhos. Era o sublime sentado nas pedras portuguesas com sua calça gasta e seu saco plástico preto.

Eu saía da estação e era preenchida pelo som orquestrado. À minha frente os versos e palavras de Sergio Vaz rasgavam minha visão e minha memória. A arte dava um tapa na cara do halo, na cara do pedestal, descia ao asfalto e dava os braços a um homem comum, sozinho no turbilhão de passantes apressados por chegar. Eu recebia um golpe. Deseja-se mais que a ração diária e pragmática que a vida exige. Deseja-se um quinhão de humanidade, de sublimidade, de Beleza. Deseja-se um taco de alguma coisa que conduza para além da casca que se vê. O gostar é acesso e construção.

Estava ali, sentado, preenchido pela orquestra, pela voz, pela letra, pela melodia, num etéreo teatro de pedras e sonhos. Eu também estava ali, passando, com arrepios na epiderme da alma. Molhadas esperanças escorriam pela minha face, convictas de que a arte liberta o humano que há em nós.

Lílian Almeida

Foto: Lílian Almeida

Foto: Lílian Almeida

2 pensamentos sobre “No chão de pedras estava o sublime

  1. GRATA!

     

    ________________________________ RITA ROCHA Diretora de Departamento de Planejamento e Gestão Educacional – SEDUC Fone: (71) 9918-3484/9206-5992/8307-5866

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