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O alpiste

Todas as manhãs, madrugada ainda, eles vinham à janela, em bandos, revoadas mornas e leves. O alpiste delicadamente espalhado no parapeito. As brandas asas roçando o vidro da vidraça. Os ágeis bicos no alpiste generoso. Aquém do vidro, os expectantes olhos de quem no esperado espera o inesperado. O inesperável. Além do vidro da janela, a manhã esperada no desabrochar dos cálidos vôos. Entre os trepidantes ramos, os ninhos. Entre os ninhos palpitantes e o vidro frio, o alado risco da espera, nos loiros grãos, nos aéreos bicos, no etéreo olhar transpassando o invi(dro)sível. A repetição dos gestos dos fatos dos atos. O percurso. A mão compondo o alpiste. Os passarinhos dispondo os bicos. Os ramos à disposição do rápido brilho. O percurso do sol no arco do dia. Novo sol novo arco novo olhar novíssimos vôos. Nova espera. Novo dia.

Na janela do terceiro andar, todos os dias o novo dia vinha no vôo dos passarinhos em busca do alpiste sempre exato. Aquém do vidro, o olhar expectante. Além, as revoadas esperadas. Em frente, os rútilos ramos. Acima, o ruivo céu. Abaixo, a janela do segundo andar. Geometricamente imediata. Onde ninguém depositava o alpiste, mas onde caía sua suja chuva mas onde as rolinhas também iam ávidos bicos.

Por favor, senhor síndico, esses bichos sujam minha janela de porcaria, embaçam meus vidros, jogam alpiste dentro da sala. Por favor, senhor síndico.

Sim senhora madame. A senhora tem toda razão. Sim senhora. Mas a moradora do terceiro andar. Tenha paciência madame.

Então, naquela manhã, a janela do segundo andar apareceu coberta de alpiste. Inesperadamente. Os vôos se dividiam fervorosos entre o segundo andar e o terceiro. Asas fofas vagos bicos incauta fome.

Então.

Na manhã seguinte, o olhar expectante esperou em vão. O alpiste suavemente espalhado no parapeito. Em vão o olhar expectante à espera do inesperado no esperado dos vôos. O inesperável. Se a mulher do terceiro andar pudesse levantar-se da cadeira de rodas para debruçar-se da sua janela, teria visto muitos corpos de passarinhos mortos caídos pelo chão. Aquém do vidro, o olhar. Além, os ramos, pesados de ninhos envenenados. Acima, o céu ruivo. Ou loiro?

Abaixo, uma janela. Terrivelmente limpa.

Helena Parente Cunha. Os provisórios. Antares/ INL, 1990.

Noite de núpcias

Abra as perninhas, vamos, meu amor, não tenha medo, não vai doer nada, eu quero ter você todinha pra mim, já esperei tanto, meu amor
amanhã, vamos deixar para amanhã
abra as perninhas, meu amor
a gente tem que fazer de qualquer maneira no dia do casamento ? não se pode deixar para outro dia?
já esperei tanto, meu amor, olhe só como é que eu estou, venha, não tenha medo
vamos ficar somente assim, bem juntinhos

 

(vamos ficar sempre juntos, meu filhos, uma família unida é a coisa mais bonita que tem, eu quero vocês sempre junto de mim)

 

abra as perninhas, meu amor
eu estou com tanto medo, você vai me machucar

 

(não me machuque, não me bata, eu juro que não fui eu que quebrei o barquinho de Dudu
tire a roupa que eu quero ver como é que você é só um pouquinho?
você já está crescendo, não é?
quando eu crescer
mas onde é que estas crianças se esconderam? o que é que vocês estão fazendo aí, escondidos?
eu não posso ir ao seu aniversário, porque estou de castigo, nem adianta pedir, porque castigo é castigo)
eu quero ver você nuinha, meu amor, tire a camisola, assim, não se encolha não sua boba, me deixe passar a mão, bem de leve, não é bom? assim
meu amor
passe a mão em mim também, assim, que bom
meu amor
você é tão bonita assim, toda nua, toda minha, toda em minhas mãos, em meu corpo, seu corpo, eu quero mergulhar inteiro no seu corpo
meu amor
abra as perninhas, vamos, assim

 

(as meninas devem andar com as pernas juntas, sentar com as pernas juntas e ficar de pé com as pernas bem juntinhas. É falta de modos moça ficar de perna aberta)

 

Helena Parente Cunha. Os provisórios. 2ed. Rio de Janeiro; Brasília: Antares; INL, 1990.

 

Ruído de passos

Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou – lhe envergonhada, de cabeça baixa:
– Quando é que passa?
– Passa o quê, minha senhora?
– A coisa.
– Que coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
– Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
– Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
– Não importa, minha senhora. É até morrer.
– Mas isso é o inferno!
– É a vida, senhora Raposo
A vida era isso, então? essa falta de vergonha?
– E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais…
O médico olhou – a com piedade.
– Não há remédio, minha senhora.
– E se eu pagasse ?
– Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
– E… e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?
– É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a benção da morte.
A morte.
Pareceu – lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.

LISPECTOR, Clarice. A Via Crucis do Corpo. 4ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

O dia em que explodiu Mabata-bata

De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.

O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que era órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas.

Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.

“Deve ser foi um relâmpago”, pensou.

Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?

Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntos os todos rios para nascerem para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança seu vôo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e ali deita a sua urina.

Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escovar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.

Reparou em volta, os outros bois assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.

Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.

A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saídas. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio a boleia do rabo do Mabata-bata, apostar na briga dos mais fortes. Em casa, o tio advinha-lhe o futuro:

– Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca.

E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que iria deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos de djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.

Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta da casa. Quando chegou ela disparou a aflição:

Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.

O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.

Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos…

Aconteceu brincadeira dele, mais nada.

Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.

Boa noite, precisam alguma coisa?

Boa noite, viemos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde, foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.

 Outro soldado acrescentou:

Queremos saber onde está o pastor dele.

O pastor estamos à espera – respondeu Raul. E vociferou: – Malditos bandos!

–  Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.

Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esses sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?

Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.

 – Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.

Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.

Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:

Azarias, volta. Azarias!

Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.

Apareças lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.

Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.

Azarias?

Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.

Sou eu, Raul.

Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ela também.

Volta em casa, avó!

O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.

E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.

És tu, Azarias. Volta comigo, vamos pra casa.

Não quero, vou fugir.

O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto pra saltar e agarrar as goelas do sobrinho.

Vais fugir para onde, meu filho?

Não tenho onde, avó.

–  Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados – precipitou-se a voz rasteira de Raul.

– Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria – E voltando-se para o pastor: – Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar os animais.

Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.

Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.

Como é? Os bois estão aí?

Sim, estão.

Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade de Azarias.

Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?

A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio e pediu ao miúdo que escolhesse.

O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.

Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.

Fala lá o seu pedido.

Tio: próximo ano posso ir na escola?

Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:

Vais, vais.

É verdade, tio?

Quantas bocas tenho, afinal?

Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.

Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.

O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:

Vens pousar quem, ndlati?

Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.

Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?

E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem de sua chama.

Mia Couto. A menina sem palavra. Boa companhia, 2013.

Avó

Graça, tenha cuidado ao limpar essa cadeira. Ela tem muito tempo, não sei se consigo repor as tiras caso alguma delas se rompa, falou, parada na porta da cozinha. A senhora gosta mesmo dela, é? Não combina muito com os móveis da sala, é velha. A senhora não acha? Não. Minha casa tem espaços vivos e a sala só tem vida por causa dessa cadeira de balanço. Desculpe, dona Maembi, não quis ofender não. Ela foi de sua avó, né? Exatamente por isso.

No canto da sala, ao lado da porta de vidro que separava a varanda, a cadeira de ferro e tiras plásticas da avó Dejanira balançava. O abajur em pedestal iluminava a memória das linhas do crochê da avó, quando ela estava lá para contar histórias como quem acrescentava novos pontos no bordado que fazia. Maembi costumava sentar-se ao lado da avó, no sofá em frente à televisão. A cadeira ficava ali, como se mantivesse a avó a fazer crochê e ponto cruz.

Voltou para o escritório, irritada com a impertinência da diarista. Esse povo não tem o menor tato ou bom senso, alinhavava ruminações. Onde já se viu, dizer que um objeto da patroa é velho? O texto aberto na tela do computador. Preciso fechar logo essa matéria para o jornal. A postura da mulher me deixa indignada. Acreditar que o seu crime foi nascer mulher pra fulaninho chegar, assediar, estuprar e tudo o mais. É um absurdo!

Saiu novamente do escritório. Esqueceu de beber água depois da irritação com a diarista por causa da cadeira. Cruzou o corredor que ligava o escritório à sala. Chegou à cozinha remoendo a sujeição da vítima.  Isso é culpa desse sistema filho de um puto, que faz as mulheres se sentirem culpadas por existir, para se desonerar da responsabilidade de apurar os atos contra a vida e a integridade física da mulher. É uma porra mesmo essa sociedade em que a gente vive, Graça. Dizia, indignada, para a diarista. Não entendi direito, dona Maembi, o que é mesmo desonerando? E por que a senhora tá assim, transtornada? Sentou-se no sofá como se retomasse o fôlego e a calma. Desonerando é o mesmo que desobrigar, dispensar, Graça. O jornal entrevistou a moça que foi estuprada no estacionamento da faculdade, se lembra? Sim, me lembro. Pois então, ela diz que a culpa foi dela por ter nascido mulher. Vê se pode? Isso desonera o estuprador, tira a responsabilidade dele. Mas é, dona Maembi, eu mesma já disse pra Deus que na outra encarnação quero ser homem. Mas será o Benedito? Benedito ou não eu quero é ser homem, dona Maembi. Ela olhou desolada para a diarista. Não sabia o que estava dizendo, embora soubesse. Graça, tudo isso é responsabilidade da sociedade machista em que a gente vive. Ela faz a gente se sentir culpada por tudo, até por existir. A responsabilidade do estupro é do estuprador, ele é o criminoso, deve responder pelo seu crime. A moça não deve sentir culpa, não tem responsabilidade nisso, é vítima. É, dona Maembi, pode até ser, mas o certo é que mulher sofre e não é pouco. E mais, a gente é um ser acanhado, se encolhe por um tudo, e numa situação dessas só quer sumir. Olhou atentamente para a diarista, aquela fala era familiar. Mirou a cadeira de balanço. Era assim que a avó dizia: “a vida, minha filha, diz que é pra gente viver encolhida, mas eu acho que não”.

Lá, onde a avó se criou, faltava quase tudo. O regime, como ela dizia, era de guerra. Guerra por sobrevivência. Acordar de manhã era vitória adiada pra de novo lutar. Não faltava pescado e farinha, mandioca dava e a maré não desampara filho seu. O resto, raridade. Seca no chão, sol na pele. Menina, lidava com a mãe na plantação em volta da casa, na maré, quando iam buscar o de comer, e nas coisas de casa. Da casa pra maré, da maré pra casa. E escola, vó, não tinha? Tinha. Não pra menina-mulher, era só pra menino-homem. Os meninos botavam água do poço pra casa, cuidavam dos animais do patrão, galinha, porco, boi, o que tivesse na sobrevivência. De tarde, iam pra escola. Eu ficava com mãe, cosia as roupas furadas no trabalho da roça, se tinha mandioca trabalhava na casa de farinha de seu Tonho, se não, era na maré ou em casa mesmo. Às vezes fazia roupa pras bonecas de milhoo e brincava de fazenda com os ossinhos de galinha. Ah, filha, eu era uma fazendeira bem rica, tinha um rebanho de boi, grande e gordo, ou então era dona de uma terra que tinha um rio no fundo da casa. Era uma fartura o meu sonho de menina. De noite, eu via os meninos fazerem a lição da escola. Eu ficava de junto, olhando e querendo entender aquilo que eles botavam no papel. Meu pai dizia que não, escola não era pra menina. Escola era pra estufar o peito dos meninos e eles saberem lidar no comércio. Pra quê menina ia precisar disso? Tinha que ficar como era, pequena, minguada. Queria se estender pra quê? Mulher era pra ser miúda, homem pra ser grande. Aquilo me cortava por dentro. Eu calava, mas no fundo de mim eu sentia que queria ser grande.

Essa correntinha em cima da mesa, coloco onde? Maembi sobressaltou-se com a voz de Graça. Desculpe, não queria assustar a senhora. Tudo bem. É a correntinha de minha vó Deja. Diala me deu depois de anos guardando a corrente de vó. Agora ela ficará comigo. Parece que a senhora gosta muito dessa avó, né? É. Lembrou-se da impertinência da diarista. Coloque em cima da minha cama. Gosto muito, gosto tanto que acabei de conversar com ela. Vixe, dona Maembi. Ela não é morta? É sim. E você duvida? Deus é mais. Eu, hein.

Lílian Almeida (conto publicado na Subversa, edição de 26 de setembro de 2016)

Da paz

Eu não sou da paz.

Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça.

Uma desgraça.

Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para onde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquela atriz? No trio elétrico, aquele ator?

Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. Vou não.

Não vou.

A paz é perda de tempo.

E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.

A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue.

Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. Proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou.

Não vou.

Sabe de uma coisa: eles que se lasquem.

É.

Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein?

Hein?

Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor.

Dor. Dor. Dor.

Dor.

A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava todo mundo, pode ter certeza. Mas a paz é que é culpada. Sabe?

A paz é que não deixa.

Marcelino Freire (Rasif: mar que arrebenta, Rio de Janeiro, Record, 2008)

O rio

O rio corria rápido em viagem até ao mar. Ia por dentro de si mesmo, afoito. Embora, vez ou outra, cansasse e diminuísse o ritmo, adormecendo, em roncos longínquos.

Num desses cochilos, um pássaro cor de cinza se aproximou. Aonde vai o rio? Vou para o mar. Dizia, com voz de sede. Mas o que vai fazer no mar, o rio? Vou correr para o mar. E por que não ficas aqui com a nossa flora tão densa e apetitosa? Eu corro para o mar. E saiu da letargia, seguindo seu percurso de rio, sem se despedir do passarinho, apenas olhando de relance para trás, prestes a cair sob a forma de cachoeira.

Essas quedas davam-lhe prazer, descia com a sua cara risonha, esquecido de tudo, no vento. E lá embaixo suspirava. Boiava, olhando para o céu, esparramado, feliz. Até entrar, sugado, por um beco estreito, de costas. Um susto! Depois, como sempre, virava-se e seguia seu rumo. Dava duas tosses e seguia sério para frente, constante, até voltar a acelerar.

Logo sentiu cócegas por dentro. Eram uns peixes cor de azul a acompanhá-lo. Para onde vais com tanta pressa, senhor rio? Vou para o mar. E o que há no mar que lhe faz ter tanta pressa? É para onde vou, para o mar. E seguia firme, deixando os peixinhos sem fôlego para trás. E por que não ficas, senhor rio? O que há no mar? Vou desaguar. E corria, ouvindo apenas o borbulhar das vozes dos peixes já distantes, nadando, insuficientes.

Na linha reta, a sua cabeça esvaziou, aberta, de testa para o céu, até que encontrou muitas curvas. Muitas e muitas, de deixá-lo tonto, ficando todo de rosto rente às margens. Então, o chão com sua voz rouca e lenta lhe perguntou. Por que não paras um pouquinho a descansar. Vou para o mar, vou para o mar. Dizia tonto, pelas curvas, sem saber se falava com a margem direita ou com a esquerda. Vou para o mar, vou para o mar. Eu não conheço esse lugar, o mar. O que há no mar? Vou desaguar, vou desaguar. Dizia, confuso, o rio. E por que a pressa, se tudo o que tens é água e vais desaguar?

Conseguindo sair do labirinto de chão, alargou-se. Mas havia uma pedra no meio da lagoa que encontrou. Por que desvias de mim? A pedra perguntou, solitária. Mas em silêncio, pesado, pela conversa com o chão, o rio apenas lacrimejou no lago aberto, deixando para trás a pedra e o lago, prosseguindo lento para o mar.

Desacelerou, pensativo. Distraiu-se. Abstraiu-se. Até que veio o vento por cima e disse ríspido. Por que está tão devagar, o rio? Vá para o mar, vá para o mar. E o rio, desconsolado, se pôs a continuar. Passou por muitas plantas, avistou um campo de flores, que ficou a contemplar, pois sabia que se olhasse para frente já daria para ver, gigante, aquele mar. O oceano a lhe esperar. Seu coração de rio acelerou. Fechou os olhos e esperou. Só ouvia o barulho imperativo das águas salgadas e agitadas do mar.

Mas em meio a tanto barulho, brotava ao fundo outra voz, maior, que surgia de dentro do burburinho surdo. Abriu os olhos e era uma árvore grande e serena. Por que veio até aqui, o rio? Disse, tímido, a gaguejar: vim para o mar, vim desaguar. E por que estás tão triste? É o fim do meu caminho. Vou desaguar, vou para o mar, vou desaparecer, vou me matar. Eu também tenho medo, disse a árvore milenar. Tenho medo de cair na terra e desintegrar. E o que podemos fazer?! Indagou o rio, apreensivo. Não há nada a se fazer, amigo rio. Chegou a hora de se desfazer. Mas por quê? Por quê? Perguntou o rio a se afogar.

A árvore segurou-o com um pedaço de raiz e sussurrou. Não tenha medo. Tu não estás inteiro aqui. Olhe para trás. E o rio olhou todo o caminho por onde percorreu. Ainda estava lá. E abriu a boca a se engolir. Depois cuspiu e tossiu. O que é isso? É você. Tudo é você. Assim como esses frutos no chão também sou eu. Eles caem de mim e a vida vai continuar, de mim, sem mim, que logo vou desmoronar.

É assim a vida, tem a morte. E morte é também vida a continuar. Vês lá atrás, o que deixou? O passarinho, os peixinhos, o chão e toda a relva ainda perdidos, mas a te amar. Tu estás bem aqui e consegues vê-los e senti-los lá. Ainda depois que te desfizeres em mar, sem mais poder vê-los, ou ainda lembrá-los, mesmo assim estarão lá, na tua atmosfera de mar, distantes, esquecidos, de alguma forma estarão lá, porque estarão aqui, sabendo o caminho que tu percorres eternamente rumo ao mar, todos os dias. E se banharão nas chuvas, imaginando quais gotas nelas são pedaços de ti, ainda que nenhuma seja tua… À beira de ti, hão de te sonhar.

Mas como saberei se será assim mesmo, se vou desaguar? Feche os teus olhos, amigo rio, que daqui te olharei chegar ao mar. Até o dia em que cairei e serei chão, novamente perdido, como também estarás perdido dentro do mar. Mas achado e perdido, é tudo a vida, meu velho amigo. Adeus. Vá para o mar. Já não posso te segurar.

E o rio seguiu desconsolado, diante dele o mar, de braços abertos a lhe esperar. Sentiu-se só. E foi-se, enfim. Sendo fortemente abraçado pelo mar, a se desfazer, a se embaralhar, mergulhado e debatido, a se afogar no mar…

Glauber Costa (conto publicado na Subversa, vol. 3, nº 8, 2005)

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Foto: Lílian Almeida

 

Mister King

Quando Mister King lutava, ficava cego. Não via o sangue. Sabia apenas que tinha de continuar, feito um trator, e partia para cima do adversário com uma gana de morte. Calçar as luvas de boxe sempre foi um ritual; ele crescia por dentro. As pupilas dilatavam, o peito abria, os músculos ficavam tensos e um ódio estranho surgia ninguém sabe de onde, alimentando um violento desejo de vitória. Só parava quando era impedido pelo juiz e voltava a si apenas quando o técnico invadia o ringue para celebrar com ele o nocaute. Agora segura a vassoura com as mesmas mãos que fizeram Gorila, vinte quilos maior, cair no chão feito um saco de cimento. Fosse naqueles tempos, os capangas do Jorge não falariam com ele daquele jeito.

Tá escutando, velho? O patrão quer te ver hoje lá no escritório.

O que ele quer? Já expliquei que meu ordenado atrasou. Pago ele assim que receber.

Teu ordenado não é problema dele. O dinheiro que tu tá devendo é.

O capanga que falava mais era um nanico. Procurava compensar a baixa estatura com um tom de voz arrogante.

Olha, fala pro Jorge…

Que Jorge? Não conheço nenhum Jorge.

Mister King respirou fundo, apertou o cabo de vassoura até sentir os ossos das mãos doerem.

Fala pro Vampiro que vou dar um jeito. Até segunda eu…

Não sou teu moleque de recado, velho. Se tu não tem a grana agora, vai ter que te explicar pro patrão no escritório. Oito horas. Ouviu?

Eu não sou surdo.

Não é mas quer ficar. Não banca o valentão comigo, que não respeito cabelo branco. Oito horas no escritório. Ou eu mesmo te arrasto pra lá, tá entendendo?

Mister King assentiu com a cabeça e os cinco capangas do Jorge desceram a rua, sumindo na primeira esquina. O segurança do hospital estranhou a movimentação e desceu as escadas para perguntar a Mister King se estava tudo bem. Estava. O ex-pugilista continuou a varrer as escadas do pronto-socorro, empurrando para a grama as folhas secas que caíam de uma figueira próxima. Era muito dinheiro. Não tinha como pagar tudo o que devia. Sabia que era complicado se meter em negócios com o Jorge, mas não teve escolha. O neto tinha passado no vestibular, o primeiro da família a conseguir um feito desses, e a matrícula era cara. Depois vieram os livros, as roupas para frequentar ambiente de gente rica e as mensalidades. Jorge, o Vampiro, sempre soube que o dinheiro era para ajudar o garoto, mesmo assim não perdoou.

No fim do dia, Mister King tomou o trem para casa. Do lado de fora do velho casebre de madeira, os netos menores corriam e a mulher conversava com as vizinhas. Os cachorros latiam até a rouquidão. Na sala, a tevê ligada em volume máximo concorria com as vozes das noras, que faziam as unhas umas das outras. Encontrou o neto na cozinha, tomando café antes de ir para a faculdade. Os livros estavam em cima da mesa. Eram grossos, de letra miúda, cheios de gráficos e tabelas. Dava gosto de ver. Mister King sentia que um novo ciclo se iniciava naquela família. A maldição estava prestes a acabar. O neto se formaria bacharel, teria carro, computador, secretária. Não terminaria a vida com uma vassoura na mão, ouvindo desaforo de qualquer um. Que se danasse o Jorge. Tudo vale a pena quando se trata de acabar com uma maldição. Principalmente com a maldição da pobreza.

Aposto que tu é o melhor da classe, guri. Mister King falou enchendo a voz de orgulho, depois de refletir um pouco sobre essas coisas.

Tem muita gente boa lá, vô. Eu sou só mais um.

Passava das sete quando o garoto se despediu. Mister King tomou uma ducha e começou a se arrumar para o encontro com Jorge. Não apareceria mal enjambrado na frente daquele vagabundo. Escovou os cabelos para trás com brilhantina, passou um pouco de colônia no pescoço e vestiu o paletó do único terno. Desceu as ruas que levavam ao Bar das Camélias, da mesma forma que havia feito muitas vezes antes, quando era moço. De longe, pôde ouvir o samba que embalava a casa. A cuíca miava um lamento que não acabava nunca e a voz trêmula de um mulato de terno branco, que parecia estar sentado naquele boteco desde o começo do mundo, conduzia o ritmo, a cadência das morenas que aos poucos se deixavam conduzir pelos quadris. Os copos de cerveja suavam e molhavam o tampo das mesas de metal já enferrujadas e mancas. Ninguém olhou para Mister King, o homem dos punhos de aço, quando ele passou perto da roda.

Não reconheceram o sujeito que nocauteou o descomunal Gorila ainda no primeiro round, numa luta clandestina que acontecera ali mesmo, no subsolo daquele bar. Colocar um peso-médio para enfrentar um peso-pesado era a graça do espetáculo. As apostas rodavam, davam lucro, graças ao fascínio humano pelas catástrofes. Porque às vezes as lutas eram catastróficas. Carcará sofreu uma fratura exposta, Hércules ficou cego de um olho, Geringonça entrou em coma e voltou falando enrolado. Mas Mister King era imbatível. Era tão ágil que deixava os adversários desnorteados e diziam que seu punho tinha o peso de uma bigorna. Antigamente, quando chegava no Bar das Camélias, era recebido com honra: os sambistas tocavam o que ele gostava, os valentões olhavam com respeito e as morenas se derretiam que nem manteiga. Agora era tratado feito um cão que veio pedir osso.

O nanico fez questão de conduzi-lo até o escritório, que era nada mais que uma salinha imunda nos fundos do bar. Não tirava o riso irônico da cara. Jorge, o Vampiro, parecia mais magro que uma semana antes e o estava aguardando de pé, com os braços abertos. Cumprimentou-o com um entusiasmo exagerado, que não correspondia às circunstâncias. Depois pediu que trouxessem para o visitante uma dose de conhaque e ordenou que o velho se sentasse do outro lado da mesa. Gastou algum tempo falando de futebol, até entrar no assunto que levara Mister King ali.

A gente tem um negócio e, que eu saiba, tu ainda não cumpriu com a tua parte.

Já expliquei mil vezes pros teus capangas que…

Pros meus funcionários?

É. Pros teus funcionários. Que meu ordenado atrasou, mas assim que eu receber começo a pagar.

Vampiro levou uma das mãos ao queixo. Ficou em silêncio. Sabia que isso impressionava.

Tudo bem. Não tem problema que tu acerte daqui uns dias. Só não entendi uma coisa. Começa a pagar? Tu não vai me pagar de uma vez?

É muito dinheiro. O ordenado não dá pra tudo.

Mister King se sentiu pequenino. O jogo do Vampiro estava funcionando.

Infelizmente, meu amigo, tu tem que pagar tudo. No meu ramo, não dá pra trabalhar com carnê. Sabe como é.

Eu sei. Mas tu quer que eu faça o quê? Não tenho de onde tirar. Pode ir na minha casa, se quiser. Tu vai ver que não tem nada.

Os três capangas que estavam na sala, entre os quais o nanico, começaram a ficar agitados. Farejavam a tensão do velho. Vampiro se levantou e se pôs a caminhar pela sala. Acendeu um cigarro. Parou atrás da cadeira ocupada por Mister King, colocou as mãos sobre os ombros do pugilista.

Acho que tem um jeito da gente se acertar, Mister King.

Fazia muito tempo que ninguém o chamava pelo nome de guerra.

Faço o que for preciso. Desde que seja honesto. Tu sabe.

Ah, não te preocupe. O que tenho a propor é muito honesto. Saiu de trás da cadeira e ficou cara a cara com o velho. Tu vai lutar pra mim.

Mister King achou que fosse piada e começou a rir. Mas logo percebeu, pela expressão dos capangas, que Vampiro não estava de brincadeira.

Olha, eu queria muito ajudar, mas isso não tem cabimento.

Por que não?

Porque eu sou um velho. Não tenho mais condições de entrar no ringue.

Tu era o melhor.

Mas isso faz mais de trinta anos e…

Então tu prefere me pagar?

Desgraçado. Sabia que aquilo era um absurdo, que os maníacos só queriam ver um velho estraçalhado por um garotão do jiu-jitsu. Mas, outra vez, Mister King não tinha escolha. Aceitou a proposta. Vampiro abriu uma gaveta, tirou um par de luvas de boxe e um calção vermelho. Jogou para o pugilista.

Não precisa. Ainda tenho as minhas luvas.

Mas não dá tempo de ir buscar.

Como assim?

Tua luta é agora.

Desceram as escadas para o subsolo. Fazia uma eternidade que não lutavam boxe por ali. O ringue do Bar das Camélias fora desativado havia muitos anos. Mas, dos degraus, Mister King ouviu as vozes embriagadas da plateia e seu nome era repetido entre palpites, apostas e gritos das morenas. O nanico acompanhou o velho para que se trocasse num banheiro sujo. Mister King enfiou as mãos nas luvas, uma névoa branca de talco ficou em suspensão no ambiente. Sentiu os dedos chegarem ao fundo. Pediu que o nanico o ajudasse com os cadarços, o que, para sua surpresa, fez com boa vontade. Deu alguns soquinhos no ar, depois na parede, para sentir melhor as luvas e resgatar a memória dos músculos. No espelho rachado do banheiro, viu um ancião travestido de boxeador. Não gostou. Mas agora era tarde.

Assim que entrou no ringue, a plateia foi ao delírio. Isso o animou um pouco. No entanto, o calor e o cheiro de mofo o estavam deixando tonto. Era preciso resistir. Não queria cair com o primeiro golpe que levasse. Logo chegou seu oponente. Estava encapuzado feito um galo. Pelo corpo, se via que era um homem jovem. Erguia as mãos para cima provocando a histeria do público, mesmo sem ver nada. Mantiveram o sujeito assim até que os lutadores tomassem posição no ringue e o juiz apitasse o início da luta. Então o próprio Vampiro puxou o capuz da cabeça do lutador. Mister King sentiu um soco no estômago. Mas seu adversário não havia saído do lugar. Continuava parado, tão perplexo quanto ele. O golpe fora desferido por uma imagem aterrorizante. Aquele que seria bacharel e acabaria com a maldição da família. Aquele que ele tinha certeza que era o melhor da classe agora estava ali, num buraco escuro, pronto para lutar com o avô. O galo de briga era o seu neto.

A plateia não parava de gritar. Um locutor anunciou a luta entre Mister King e Prince. O garoto era o príncipe no ringue. Sua nobreza era exercida na hora da aula, que acontecia em alguma faculdade que nunca frequentou. Mas ele estava abalado, não conseguia sair do lugar. E Mister King sentiu o cheiro do medo. O neto estava apavorado. Aquele moleque desgraçado estava apavorado. De repente, as pupilas do velho dilataram, o peito abriu, os músculos ficaram tensos e ele se encheu de ódio. Partiu para cima do neto e o acertou com um soco frontal, direto, seguido de um cruzado no lado esquerdo da cabeça. O garoto já começava a cambalear, mas Mister King deu outro golpe, um uppercut que o atingiu no queixo e fez com que alguns dentes saíssem voando. Havia cheiro de sangue. Vampiro estava em frenesi. E o pequeno príncipe amoleceu as pernas, caiu no chão inconsciente, enquanto a plateia extasiada gritava em uníssono: Mister King! O velho estava cego.

Paulliny Gualberto Tort (conto publicado na Revista Raimundo, edição  de inverno/ 2015)

 

Gosto de manga na boca

Ela mordeu a carne da manga rosa com desejo. Do canto da boca o sumo amarelo grosso escorria. Sugava a polpa com vagar recobrando a imagem de Rodrigo. Ela lhe ensinou que comer manga com mãos e boca era mais gostoso. Ele usava a faca e cortava toda a sensualidade que o ato podia ter. Aprendeu com ela a chupar manga e a valorizar todo tipo de suculência. Às vezes, na cozinha do apartamento, começavam com o que estivesse na fruteira, pêssego, ameixa, pêra. Ele só não gostava de brincar com bananas, dizia que além da forma pouco atrativa a fruta era seca, não se derramava em maciez. Exploravam os sabores, a carnadura, as texturas, os líquidos, os movimentos da boca e da língua. Procuravam equivalências com o corpo humano, o aveludado do peito e do pêssego, os fios do caroço da manga e os pelos dos testículos. Quando se davam conta já misturavam as bocas e os sabores em beijos e carícias pelo corpo todo, sobre a mesa ou no chão mesmo.

Fazia tempo que não via Rodrigo. A última vez foi num buffet de sopas, ocasionalmente. A noite era de tempestade. Raios, relâmpagos e uma chuva intensa conferiam uma atmosfera peculiar. O reencontro foi incerto e suave. Ele contou que deixou o surf para os fins de semana e batia ponto num escritório de arquitetura. A vida agora está pelos dias no calendário e pelas horas do relógio. E Eu? Estou ensaiando uma nova peça, uma nova companhia. Continuo guiada pelas noites e luas. Lembraram da infância e das coisas que as mães obrigavam a comer, brócolis, espinafre, beterraba. Quem imaginaria você tomando um creme de aspargo? As coisas mudam, a gente aprende coisas novas, você aprendeu a chupar manga, lembra?  A porta do relacionamento foi aberta. O término foi por incompatibilidade de gênios. Ela queria um homem que fosse o único. Ele não se queria exclusivo dela. Ela era da noite, da chuva e das tempestades. Ele era do dia e do mar. Ainda fica de pau duro quando vê alguém chupar manga? Isso só acontece com você. As outras mulheres chupam manga sem tesão. Nem chupam, cortam. Ela deixou uma sobra do caldo branco escorrer pelo canto da boca. Olhando fixo para ele limpou com o indicador e concluiu com o dedo firmemente pressionado entre os lábios. Era o bastante. Ele apertou-lhe a coxa debaixo da mesa e encontrou a vulva recoberta pelo jeans. Olhavam-se em labaredas, fogo nas mãos e nos sexos. Resolveram que a concretude do fim não os consumiria. Estavam ali e queriam se amar. O tempo de uma noite e de todos os dias incertos era o bastante para viver o que desejavam. Viver é um risco, não há garantias.

(…)

Lílian Almeida

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Foto da imagem de Renata Felinto presente na Coletânea Além dos quartos

O conto “Gosto de manga na boca” integra a coletânea erótica feminista negra “Além dos quartos”. A publicação foi uma iniciativa do Coletivo feminista negro Louva Deusas e reuniu 41 escritoras e 11 desenhistas feministas negras de todo o Brasil. O projeto concretizou-se através do esforço conjunto do Coletivo, das autoras e de apreciadoras/es da literatura e do trabalho desenvolvido pelo Louva-deusas, mediante doações. Ficou com vontade de saborear o conto até o fim? Ou entregar-se ao prazer que mora nas páginas desse livro? Entre em contato com o Louva Deusas ou com a autora (através deste blog).

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Imagem disponível na Internet

A bênção

Parada na porta, ela observa. A casa pequena viu o tempo passar no esmaecimento das paredes, na fuga das forças e valentias daquela mulher. Agora ali, à espera do fim, sem voz, quase sem movimento. Os cabelos brancos, trançados, guardavam a imponência de sua sabedoria. Parada, ela olhava como quem avalia e pede licença. De onde está pode ver um pedaço da cama da avó, divisado pela cortina de pano amarrada no meio da porta do quarto. Aproxima-se e fica entre o tecido e a parede. A avó deitada, os lençóis dormindo no corpo quieto.

Na simplicidade desse quarto, reverencio o seu percurso, vó, dizia com os olhos. Uma mulher negra de cabelos brancos aguarda o fim dos dias. Eu, mulher negra de cabelos ainda pretos, me curvo e peço sua bênção, minha avó.

A bênção, minha avó. O silêncio continua cortado pelos barulhos da prima na cozinha, preparando o almoço. Sente no corpo um leve arrepio. Lembra-se do primo mais novo, ele pede a bênção e sabiamente ele mesmo responde, Deus lhe abençoe, no coração ela já abençoou.

Recebo sua bênção e a sabedoria ancestral das mulheres. Folhas, unguentos, chás e rezas. Colho e acolho cada prece, cada palavra bendita e o poder sagrado dormente na natureza. Por trás de seus olhos se perfilam centenas de mulheres. Em cada uma a marca do tempo, do destempero, dos dissabores de um caminho aberto no peito, na força e doçura de ser mulher.

Chega junto à cama e toma-lhe a mão. Observa atentamente aquela mulher. Ela parece responder com um leve pigarrear. Sou eu, vó, Diala. Olha para a avó como quem conversa. Acaricia os cabelos brancos e beija-lhe a mão. Beijo suas mãos de luta, cheias de linhas de vida e saberes guardados. Quantos, vó, gritaram seu sopro de vida em suas mãos? Quantos umbigos enterrados? Quantas vezes o sangue por onde brota a vida fez-se flor em suas mãos, na cabeça da criança? Heim, minha avó? E as vezes que as ervas e seus murmúrios fizeram sarar menino, velho, homem ou mulher? O canto surdo e sibilante enchia a casa precária e suas mãos, vestidas de folhas, dançavam diante do corpo do enfermo. A senhora se lembra, vó? Mulher decaída de vontade de viver, quebrantada. É olhado, né? E espinhela caída? A senhora se lembra?

A velha abre os olhos. Uma névoa desbota o preto e o branco já parece amarelado naquele olhar. Mira a neta como quem fala alguma coisa. Os olhos se tocam. O silêncio guardava cada palavra daquele diálogo. O olhar baço mareja, uma lágrima brilha nos vivos olhos negros da neta. O rosto da avó volta às pálpebras cerradas.

Esses olhos serenos já viram o tempo e os temporais. Tempestades, ventanias, mares revoltos. Revê as cenas das histórias contadas pelas tias, as lutas e as conquistas de um tempo imemorial. Celebramos a união com toda a existência, levantamos bandeiras, preparamos unguentos, reverenciamos o sagrado, fomos alimento para as fogueiras da intolerância. Beija novamente a mão da velha. Reconhecia o lugar dela na sua trajetória. A minha linhagem está no atemporal do tempo. Sou a herança dos percursos trilhados por minha tataravó, minha bisa, minha avó, minha mãe, minha filha, minha neta, bisneta, tataraneta e além.

Um cheiro de erva subia do fogão e chegava ao quarto. Quantas vezes sarou as dores com chá, heim, vó? Era tanta folha! Água de alevante para o coração. Folha de araçá, bem nova, para segurar diarreia. Ah, minha vó, estendo minhas mãos e recebo suas bênçãos. Curvo meu corpo e reverencio o seu saber ancestral, todas as mulheres que estão atrás de ti, que desbastaram as pedras do caminho por onde passo agora. Honro seus corações mutilados pelo desrespeito, suas mãos ensanguentadas pelas violências, seus olhos molhados das dores todas. Ó, mulheres que me antecederam, benditas sois todas vós.

Fiz um chá de folha de louro, você quer, Diala?, a prima oferecia. Não tô com o estômago muito bom. Quero sim, pode trazer aqui? Claro. E a minha velha, tá acordada? Ela voltou a atenção para a avó. Sua mão sentiu no aperto a força daquela mulher. Sim. A prima chega à porta. Um suspiro rouco rasgou desde o ventre. A mão deixando a mão. As xícaras estilhaçando no vermelho do piso. A erva, o chá, lavando, abrindo a passagem. Que Deus te abençoe, minha avó.

Lílian Almeida – (publicado em 21/03/2015 no blog Dênisson Padilha Filho )

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Foto: Lílian Almeida